domingo, 25 de março de 2012

ENQUANTO HÁ FORÇA!

A velhinha, toda de negro, com o típico lenço na cabeça, encontra-se sentada na soleira da porta.

São mais de 90 anos e o peso de uma viuvez que para além de ser pelo marido, familiares, vizinhos, amigos e conhecidos, é a própria viuvez por um país, tristemente de “luto”, que ela carrega.
São mais de noventa anos de muito trabalho, ingrato e quase escravo, por esses campos ribatejanos, de jornas de sol a sol, bucha minguada e precárias e inumanas condições de vida.
O que aquela vida já passou, o que aquela vida já assistiu!
Será que se deu conta da janela que se abriu em Abril e do sol que por ela entrou, trazendo sinais de esperança num mundo mais justo e igualitário?
Será que seu deu conta dos ventos de Abril que varreram estas Lezírias Ribatejanas e meterem em sentido grandes agrários e casas senhoriais?
Hoje os dias caminham a passos largos para ficarem iguais aos da sua juventude: pesados, tristes, negros de fome e injustiça.
Provavelmente ela já não se dará conta que os tempos são iguais a quando era moça, jovem e com sonhos (porque os jovens sempre sonham, por mais cinzento que se adivinhe o futuro) e apenas recordará com saudades os tempos em que tinha outras forças e uma vida pela frente.
Deve levar uma vida simples, entrecortada pelas visitas de filhos e netos, conversas no banco da fonte, o escutar de mais um toque a finados, lembrando que mais alguém conhecido se foi.
Naquela rua de pouco movimento, daquela vila de parcas novidades, alguém passa a correr em final de mais um treino.
Já não é novidade para os seus mais de 90 anos. É alguém que ela há muito se habituara a ver passar por aqui a correr, alguém que ela conhece desde que ainda era menino e vinha passar os fins-de-semana e as “férias grandes” à aldeia onde a avó nasceu.
Alguém passa a correr e a velhinha de mais de 90 anos, que parece carregar o peso do Ribatejo nas próprias costas ou talvez mesmo o peso de um país cada vez mais cinzento, triste, bolorento e salazarista exclama: Ah belas pernas!
Sim. Belas pernas, que as dela já lhe pesam, embora ainda consiga acartar alguma lenha e ir até a fonte conversar com as vizinhas.
E o jovem corredor (sim porque quem tem 51 anos é um jovem à vista dos mais de 90 anos daquela anciã) acena-lhe com a mão sentindo-se como se estivesse a acenar ao Ribatejo inteiro, a este país inteiro, mergulhado na mais negra das viuvezes e das solidões.
Mas, como corredor de fundo que se orgulha de ser, vem-lhe logo à memória o título de uma canção do Zeca Afonso: ENQUANTO HÁ FORÇA!

Jorge Branco texto e foto.

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