Quando vi o anúncio da prova
Madrugada a Correr fez-se um “clique” no cérebro!
Confesso que correr àquela
hora e ver o sol nascer não é nenhuma novidade para mim pois socorro-me de
horas bem madrugadoras para fugir ao calor aqui em treinos pela Lezíria
Ribatejana! O percurso entre o Estádio Nacional e a Rotunda de Algés também não
é algo que se me afigure atractivo e a distância de 7 km então é uma “desgraça”
para quem não gosta de provas de 10 km e só começa a sentir que vale a pena
fazer uma prova a partir dos 15 km!
Mas o tal “clique” que tive
foi imaginar-me a fazer a prova e depois seguir para um treino que acabaria na
casa de um tio meu perto da Avenida Infante Santo em Lisboa. Com alguns
acrescentos daria algo a rondar os 21 km e seria um treino de sentimentos para
mim!
Vivi 30 anos na Avenida
Infante Santo, treinei muito no Estádio Nacional e toda a zona das docas entre
o Cais Sodré e o Estadio Nacional foram a minha “casa” de treinos! Construi
grande parte das minhas modestas 4 maratonas e a minha ultra maratona nessas
zonas na já longínqua década de 80 do século passado!
Mas muito mais que isso alguns
familiares meus, já falecidos, viveram, ou trabalharam, ao longo do desse
percurso nomeadamente entre a Cruz Quebrada e Algés.
Pode-se dizer que cada metro
desse percurso me traz algumas memórias especiais
Conjugando a boa vontade do
João Lima que desde a primeira hora se ofereceu para me ir buscar à Infante
Santo com o alojamento em casa do meu tio Egas Branco lancei-me na aventura da
Madrugada dos Sentimentos.
Depois de “não pregar olho” a
partir das 3:30 da manhã e me ter levantado às 4 encontrei-me como o João Lima
ainda antes do que estava combinado que seria as 5:05 da matina!
A prova em si o que teve mais
de especial foi a companhia do João que mesmo com a prova que fizera na véspera
e os problemas de saúde que o atormentam ainda deu para meter um andamento algo
vivo para um “coxo” como eu e que a seguir a terminar a prova ainda lhe
faltavam correr mais dois terços!
De salientar que logo no
percurso da prova assinalei o primeiro ponto sentimental ao passar à porta do
prédio onde viveu a minha Tia Branca na Avenida Ivens (mais conhecida pela
Marginal) em pleno Dafundo.
Confesso que acabar a prova,
entregar o chip e depois arrancar em solitário para mais 14,160 km de corrida
não foi fácil!
Avenida Pierre de Coubertin,
lá vou a descer, descontraidamente, em direcção à Cruz Quebrada aplaudindo e
incentivando quem vem a terminar a sua prova.
Quantas vezes desci aquela
Avenida para os meus treinos longos em que “voava” para o Cais de Sodré ou a
subia em “alta velocidade” no regresso desses mesmos treinos!
Foi também por essa Avenida
que parti e voltei (na companhia do Egas) para uma ligação, histórica, de um
treino entre o Estádio Nacional e o Estádio Universitário integrado na
preparação para as 12 Horas de Vila Real de Santo António em 1987!
Cruz Quebrada: aqui desço para
o Paulo Duque e há que fazer um pequeno desvio passando pelo túnel e pela ponte
sobre o Jamor para me dirigir ao Largo da Estação.
Chove e a pequena descida no
passeio escorrega como tudo!
Largo da Estação, a antiga
Fabrica Portuguesa de Fermentos Holandeses agora é um edifício em ruínas,
emparedado, que faz doer a alma a quem é neto de um homem que ali trabalhou 40
anos da sua vida dando o melhor de si! Onde também trabalhou uma tia e um tio
meu!
Na minha família aquela
fábrica foi sempre os Fermentos.
Olho para o edifício e julgo
que ainda consigo identificar a janela do gabinete do meu avô Eugénio Nunes
Branco! Passa-me toda uma vida pela frente, emociono-me, comovo-me! Mas está
feita a primeira homenagem daquele treino tão especial! O primeiro lugar de
sentimento!
Volto para a Policarpo Anjos e
passo à porta de onde viveu o cunhado do meu tio, Luís Botas (falecido há
relativamente pouco tempo) e onde ainda mora a cunhada, a Lourdes. Mais um mar
de emoções, mais uma casa que me foi tão familiar e onde passava tantas vezes
depois dos treinos no Estádio Nacional.
Atinjo a Paulo Duque e aqui os
sentimentos são muitos intensos: num gaveto virado para a marginal viveram os
meus tios Adelaide (tia avó) e João Barros e em frente desse prédio a irmã
desse meu tio, a Ema.
Um mar imenso de recordações,
um oceano de vida, tanta, tanta coisa naquela pequena rua. Vou mesmo até à
esquina à porta do prédio e volto para trás a fim de seguir para Algés pela
antiga linha dos eléctricos.
Em Algés passo para o lado de
lá da linha pelo túnel da estação e entro num percurso que tem tantas histórias
e recordações que seria fastidioso falar de todas aqui!
Chove, está vento (felizmente
de costas) mas aquela zona é sempre bela!
As pernas ainda vão
relativamente leves mas estranho o piso de paralelepípedos do qual já nem me
lembrava!
Atinjo a Torre de Belém e como
o treino é mesmo de turismo e sentimento corro mesmo no pequeno pontão que
acaba no Tejo. Olho aquele Tejo imenso que me corre nas veias e me segue desde
criança!
Volto para trás e contorno o
relvado do Jardim da Torre de Belém. Centenas e centenas de quilómetros percorridos
naquele jardim que eu e o meu tio conhecíamos de olhos fechados o que nos
permitia treinar mesmo de noite sem frontal (frontal o que era isso? Nem se
usava na altura!).
E segue o treino, as docas
estão tão diferentes das “minhas” docas”.
Padrão dos Descobrimentos, dou
mesmo uma volta à monumental Rosa do Ventos no chão de pedra, tão bela! Como eu
gostava de passar ali em treino!
As pernas já pesam alguma
coisa, chove, faz vento, e as docas parecem-se algo com as docas do meu tempo
pois só se vêem pescadores!
Pensava que iria ter um dia de
sol, aquilo pejado de gente: caminheiros, ciclistas, corredores, simples
passeantes mas nada, só pescadores.
Jardim da Cordoaria (como a
gente lhe chamava), aqui o meu tio tropeçou num espigão que segurava um banco
de jardim ao chão, roubado na véspera, e deu a maior queda da sua carreira de
corredor de fundo com a fissura de uma costela, que lhe custou uma paragem de
mais de um mês!
Começo a “fazer mira” à Ponte
25 de Abril que tanto passei por baixo, em treino e algumas vezes por cima, em
prova!
Passo a ponte e lembro-me de
quando aqui fiz um treino em que o vento era de tal ordem que quase nos queria
atirar ao Tejo e onde o barulho da chuva tocada a vento contra os frágeis
impermeáveis nos impedia de ter uma conversa normal. Só nos ouvíamos aos gritos
e muito mal.
Gare Marítima de Alcântara, da
minha Alcântara proletária de operários da CUF, estivadores e varinas! Da minha
Alcântara, minha pátria, minha freguesia, sou de muitos lados mas Alcântara é a
minha pátria mãe!
A recordação mais antiga, do
fundo do baú das minhas memórias, que envolve esta Gare reporta-se à chegada do
meu ex padrasto vindo da Guerra Colonial, a multidão que aguardava o
desembarque, os acenos, os lenços, os gritos os choros, o meu padrasto que me
pega ao colo e o menino que já nem o reconhecia na sua farda de oficial e no
primeiro momento tem um certo “receio” daquele “polícia” que lhe pega ao
colo!
Pesam as penas mas a Infante
Santo está perto!
Finalmente chego ao viaduto da
Infante Santo. Quando aqui vivi ele ainda não existia e para passar para o lado
das docas ou se ia à passagem de nível do Jardim da Rocha do Conde de Óbidos ou
ao túnel da estação de Alcântara – Mar.
19 km e picos, chuva, uma
escada para subir e descer não é algo que me agrade lá muito mas tem que ser!
Infante Santo e toca a subir!
Não é fácil! A “coisa” sobe proporcionalmente à falta de forma!
Estou a passar ao número 48,
aqui vivi praticamente 30 anos da minha vida, deste tenra idade.
Cansado, ensopado, dorido muscularmente,
olho lá bem para o alto, para o 10º andar e passa-me toda uma vida pela frente
em flash rápido! Emoção, emoção, emoção.
E continuo a subir,
penosamente, aquela Avenida onde cheguei a fazer séries abaixo dos 5 minutos ao
km para o Manteigas-Penhas Douradas! Já não existe mais o Gasómetro, agora são
prédios modernos e num desses a loja de um amigo meu.
Cruzamento da Sant'Ana à Lapa
e agora subo a pela Sant'Ana à Lapa? NÂO!
A Infante Santo é para se
fazer toda! Toma lá mais uma subida para estares calado, toma lá com a Domingos
Sequeira!
Campo de Ourique! Subi um
bocado desde lá de baixo do Tejo! Agora é descer um pouco e estou no “centro de
estágio”.
Ensopado, estropiado e feliz
chego a casa dos meus tios! Sou logo brindado com foto à saída do elevador! Até
tive medo de ir de elevador de tão molhado que estava, mas escadas depois
destes 21,300 km...?!
A minha tia horrorizada dá
guia de marcha acelerada para o banho! Ai que apanhas uma pneumonia! Nem tive
tempo de respirar! Mal ela sabe que o marido apanhou “toneladas” de molhas
iguais ou maiores só que tomava banho em balneários!...
Esta corrida/treino é para o
meu “irmão” João Lima e em memória de Gertrudes Maria Valente e Branco e
Eugénio Nunes Branco, Laia e João Barros, Branca Bélgica, Ema e Luís Botas com
muita saudade mas nenhum esquecimento.
Nota: tirando as duas primeiras fotos que ilustram este texto todas as outras fotos são “fotografias de saudade”.