quarta-feira, 4 de outubro de 2017

MEMÓRIA - AS "MINHAS MULHERES" DA CORRIDA "Honi soit qui mal y pense!" (escrito entre 21 e 22 de Setembro de 2017, só com recurso à memória)

Por: Egas Branco

ROSA MOTA


Foi nos anos 80 do século XX que a nossa campeã começou verdadeiramente a tornar-se uma grande atleta, a caminho de ser a melhor maratonista de sempre até à sua altura. Lembro-me da tarde em que, inesperadamente, porque poucos o julgariam possível, Rosa Mota em Atenas, nos Campeonatos Europeus de Atletismo, cometeu a grande proeza de vencer destacada a maratona. Quando a televisão, na altura apenas o canal público, nos mostrou Rosa à frente foi uma emoção, enorme quando a vimos entrar isolada no Estádio Olímpico.
Foi uma das maiores emoções porque passámos a ver televisão. Por tudo: porque os êxitos dos portugueses nas grandes competições desportivas, fora dos desportos de elite, praticados apenas pelas classes até então favorecidas (o hipismo, a vela e pouco mais) serem inexistentes, e principalmente, talvez, pela enorme simplicidade da atleta portuguesa que, a despeito de todos os triunfos e glórias, que foram até ao ouro olímpico, se manteve sempre inalterada ao longo de toda a sua carreira e depois dela terminada. Privilégio dos muito grandes, na sua actividade e na sua humanidade.
Por essa época Rosa continuava a apoiar a Corrida para Todos, ainda na sua fase inicial de crescimento, que desabrochou verdadeiramente durante e após a Revolução de Abril. Conservamos o seu autógrafo, obtido no final de uma prova em que se promovia também a construção da primeira pista de tartan no Porto, cidade natal de Rosa!

GRETE WAITZ


Tínhamos por ela uma admiração enorme, que se foi consolidando ao longo da vida, pela grande maratonista norueguesa, que demonstrou que a maratona poderia ser corrida com grande sucesso pelas mulheres. 
Desde sempre fui contra toda a discriminação, no Desporto também. Por isso admiro os discriminados que não aceitam a discriminação e contra ela lutam. Grete fê-lo e juntamente com o seu amigo Fred Lebow ajudou a lançar a maratona de Nova Iorque, que Fred havia criado do nada, e em que participou e venceu várias vezes.
Foi com ela que Fred correu a sua última maratona, em casa, já muito doente vindo a falecer pouco depois. Sendo comovente a fotografia que ambos deixaram para a posterioridade, terminando fraternalmente abraçados aquela famosa corrida.
Grete, também ela viria a ser atacada pelo cancro anos mais tarde e não resistiria à terrível enfermidade. Mas a sua imagem e determinação permanece para todos os que amam a Vida, no que ela tem de melhor e mais digno, no comportamento social e na mais importante das coisas secundárias, na célebre frase do Dr. Turblin, médico, estudioso do comportamento corpo humano em esforços prolongados, amante do Desporto, que segundo ele é justamente a actividade desportiva.

PAULA RADCLIFFE


Ainda continua a ser a recordista mundial da maratona (ou, se preferirem, detentora dos melhores tempos de sempre) em prova exclusivamente feminina ou em prova mista.
No entanto quando a vimos correr pela primeira vez, no Estádio 1º de Maio, em Lisboa, num meeting internacional, ainda era uma ilustre desconhecida. Mas nessa tarde venceu sem apelo nem agravo as estrelas do momento nos 10.000 metros, incluindo a que viria a ser uma das nossas campeãs olímpicas, Fernanda Ribeiro, se não me falha a memória. Desde o início da prova reparámos na atleta e calculámos que iria ser muito difícil às estrelas vencê-la.
Não esqueceremos o seu estilo muito particular, abanando a cabeça ao ritmo da competição, que haveria de se manter ao longo de toda a carreira, dando-lhe grandes triunfos.
Muitos anos mais tarde, quando já admirávamos esta grande campeã pelos seus extraordinários resultados e principalmente pelo espírito desportivo que demonstrava, assistimos pela TV ao seu trágico falhanço nos Jogos Olímpicos de Pequim, quando, por indisposição, teve que parar e não mais conseguiu recuperar. Outros teriam desistido. No entanto, como extraordinária desportista que era, embora superfavorita da maratona, não desistiu e concluiu num, para ela modestíssimo lugar. Depois seria mãe e voltaria aos grandes triunfos, como na maratona de Nova Iorque, para grande alegria dos seus admiradores, entre os quais modestamente me incluía.

RITA BORRALHO


Esta magnífica atleta que nos habituámos a admirar pelas suas frequentes participações ou apoios às provas para todos, foi-nos dando motivos de satisfação pelos resultados obtidos ao longo da sua carreira, nomeadamente e mais uma vez, na maratona, onde foi atleta de topo.
Mas há um momento muito saboroso da sua carreira que nunca esqueceremos. Ia disputar-se em Lisboa, na impecável pista de relva no Estádio Nacional, hoje do Jamor, expressamente preparada para o evento, o Campeonato Mundial de Cross, que o campeoníssimo Carlos Lopes haveria de vencer, deixando para trás os campeões africanos, já então a dominar grande parte das competições internacionais. Cada uma das equipas estrangeiras era acompanhada por um atleta português, também em treino. A Rita Borralho coube uma equipa dos países árabes mais fundamentalistas, talvez a Arábia Saudita, tanto quanto me recordo. Os atletas dessa equipa começaram por achar descabido serem acompanhados por uma mulher, ser que para eles era considerado com menos capacidade. E a Rita haveria de conduzi-los em treino até ao hotel onde se encontravam alojados. Conta-se que a atleta sabendo das discriminações de que eram (e ainda são) vítimas as mulheres naquele e noutros países de governo semelhante, resolveu dar-lhes uma lição, acelerando o andamento e puxando por eles, modestos atletas de segundo ou terceiro plano internacional. Não querendo dar parte de fracos seguiram "a deitar os bofes pela boca" atrás da nossa campeã. Quando se soube cá fora da história a risada foi geral (e também a satisfação pela lição dada).
Numa nota pessoal: cheguei a treinar naquela belíssimo tapete de relva, o melhor em que corri em toda a vida, assim que a pista foi aberta depois do Mundial. Infelizmente, meses depois, sem manutenção, voltou a transformar-se no nosso velho percurso de cross, de lama e terra batida irregular, com alguns tufos de erva, às vezes percorrido por um frio gélido, onde durante tantos anos treinámos, de inverno a inverno.

AURORA CUNHA


Lembradas a Rosa e a Rita mal pareceria se não se citasse a Aurora. Trio inesquecível, daqueles anos, que muito admirávamos.
Nunca nos deixámos influenciar pelas tricas inventadas e fomentadas pelo mau jornalismo que também existia naqueles tempos saídos da Revolução de Abril, e que nesse aspecto não é diferente do actual, agora até bem pior por nos faltarem jornalistas desportivos da dimensão de um Carlos Pinhão, de um Homero Serpa, de um Carlos Miranda, e outros, que obviamente não teriam lugar nos medíocres pasquins actuais à correio da manhã, que se estendem, no estilo, ao jornalismo desportivo.
 Aurora, já retirada, continua no entanto a ser alguém que aparece muito e colabora nas provas no seu Porto e Norte. O que nos causa sempre uma grande satisfação, lembrando a grande atleta que foi.

ALBERTINA DIAS


Pela elegância do seu estilo sobressaía nas provas portuguesas. Em pouco tempo tornou-se uma das atletas portuguesas mais destacadas pela sua qualidade, num tempo em que o atletismo, principalmente na disciplina de fundo, se tornava um dos principais no nosso País. Mas foi no País Basco que se tornaria Campeã Mundial de Cross, prova que seguimos em directo através da TV.
Não admirou também que nas suas incursões na maratona obtivesse um dos melhores tempos de sempre, o segundo melhor de sempre entre as atletas portuguesas.
Algumas vezes nos cruzámos com ela, na Corrida da Festa do Avante, na Atalaia, quando Albertina Dias, vencedora feminina, terminada a sua prova, vinha rebocar algum atleta amigo que ainda não havia chegado. Sempre com um sorriso fraterno e de grande simplicidade da enorme atleta que era.
Algumas infelicidades na sua vida pessoal e familiar encurtaram-lhe uma carreira que poderia ter sido ainda mais brilhante. Mas, para nós, é inesquecível. Ainda nos cruzaríamos com ela nas competições de montanha, mas estávamos já no final das nossas participações, continuando ela a atrair a atenção pelo seu estilo elegante inconfundível.

CARLA SACRAMENTO


Uma das nossas, e não só, maiores especialistas de meio-fundo de sempre. Vários títulos mundiais e participações olímpicas brilhantes.
As suas participações em Provas para Todos mostraram a sua postura humana e desportiva, nunca se arvorando em grande estrela.
Recordamos, por exemplo, a sua participação numa prova de milha, aberta a todos, disputada entre a Avenida da Liberdade e da República, que obviamente venceu.
Também na Corrida da Festa do Avante participou algumas vezes e era com grande admiração e satisfação que a víamos em fraternal convívio no final daquela famosa corrida, a mais participada das que abrem a época desportiva, no primeiro domingo de Setembro.

JOAQUINA FLORES


Começou tarde, já veterana, vindo a tornar-se no entanto numa das atletas mais medalhadas internacionalmente, em europeus e mundiais para veteranos.
A sua simplicidade e alegria tornavam-se contagiantes nos grandes pelotões de alguns milhares de atletas. Dizíamos com razão que ela era a atleta mais popular entre aquelas centenas ou milhares de atletas presentes.
Assisti no entanto a alguns dos seus treinos iniciais, quando era apenas uma principiante. No Estádio 1º de Maio, em Lisboa, tentando cumprir à risca o plano e as orientações traçadas pelo seu irmão, Dinis, também atleta veterano de muito bom nível. Não fosse ele zangar-se com a mana, por ela não cumprir o plano estabelecido, a que não faltavam a partir de certa altura as famosas séries.
Escusado será dizer que os dois manos e a respectiva família nunca faltavam às clássicas, incluindo as míticas Corrida do 1º de Maio e Corrida da Festa do Avante.

ANALICE SILVA


A primeira vez que participei e assisti a uma prova com esta inesquecível atleta, brasileira de nascimento mas há muitos anos radicada em Portugal, foi no Algarve, nas célebres e saudosas 12 Horas de Vila Real de Santo António, onde fui ainda nos meados dos anos 80 acompanhar e apoiar o meu sobrinho Jorge Branco. A Analice concluiria no top 10, pouco depois do Jorge, que seria 5º e também com mais de 100 km percorridos.
A partir daí acompanhámos com muito interesse e simpatia a sua actividade, cada vez mais virada para as grandes distâncias, da maratona à ultra-maratona e depois os 100 km e até mais, provocando a admiração de todos pela sua invulgar resistência física, para mais num pequeno e franzino corpo.
Parecia indestrutível, mesmo quando a certa altura nos provocou um susto, interrompendo a actividade desportiva sem aviso, correndo até o boato de que nos teria deixado.
Mas felizmente voltou, melhor do que nunca e rara era a clássica onde não estivesse presente e aumentando cada vez mais a quilometragem percorrida mensalmente. Posso afirmar que foi a atleta que mais fotografei porque a pergunta entre nós era quase sempre: "A Analice já passou?"
Até um dia, em que a terrível enfermidade, sempre ela, lhe bateu á porta. Pensámos que a Analice, com o seu espírito indomável, iria resistir e vencer mais uma vez. Não aconteceu assim. Deixou-nos para grande pesar nosso mas julgo que nenhum dos muitos corredores, anónimos ou não, do grande pelotão, que tiveram o privilégio de a conhecer a irá esquecer algum dia.

E DUAS MULHERES NA ORGANIZAÇÃO: LUCINDA MATIAS E MARIA MACHADO (DIDI)


Mas a organização não podia faltar! E, como se costuma dizer, por trás de grandes homens há quase sempre grandes mulheres, trata-se das companheiras de dois dos grandes iniciadores e criadores da Corrida para Todos, no nosso País: em estrada, o professor Mário Machado e no trail (então designado montanha) o professor António Matias.
Ambos atletas de excelente nível que, sem deixarem de correr, sendo professores de educação física se dedicaram à organização de corridas, com dois famosos troféus precursores de tudo o que surgiu depois - Troféu Spiridon, para a estrada, indo até à meia-maratona e maratona, e Troféu Terras de Aventura, para a montanha (trail). E Lucinda Matias e a professora Maria Machado (Didi), estiveram sempre nas organizações, num apoio inexcedível.

As nossas memórias, dada a nossa grande participação durante alguns anos nessas competições, são muitas. Mas há um momento, em especial, que nunca poderei esquecer, quando atravessei um dos momentos mais angustiantes da minha participação na corrida a pé, em montanha, com todas as suas dificuldades e até perigos, com a falta de oxigenação também a contribuir, e em que tive o apoio, hoje dir-se-ia psicológico, da Lucinda Matias e também obviamente do António Matias, como responsável pela organização, Tudo, no entanto, se resolveu rapidamente, mostrando como funcionava bem a organização daquelas provas nos tempos heróicos dos início do Trail/Montanha. Por razões pessoais não me vou alongar mais mas ficando apenas o registo do gesto fraterno e amigo.

Nota: Quase todas as fotos
foram retiradas da Net.