domingo, 27 de novembro de 2011

A CORRIDA NUMA REDOMA DE VIDRO

Há pouco tempo dei voz a um protesto da população da vila onde vivo à qual encerraram a extensão do centro de saúde obrigando-a a deslocar-se a uma vila vizinha que dista 10 quilómetros e para a qual nem sequer há transportes.
Num aparte posso acrescentar que se tratar de uma população maioritariamente idosa, com muito e graves problemas de saúde e fracos recursos e essa vila para onde querem obrigar as pessoas a deslocarem-se também tem médicos em número muito deficiente.
Ao dar voz ao protesto desses meus conterrâneos usei, entre outros meios, o “mural” de um grupo sobre corrida no Facebook.
Ao tomar esta atitude fui criticado por dois elementos do referido grupo que disseram tratar-se de um grupo onde apenas se falava de corrida.
Dizia um dos membros, e passo a citar: “Fazer desporto é uma das poucas coisas em que todos somos indivíduos livres de todas as etiquetas sociais.”
Outro participante afirmava: “Este não é de todo o lugar indicado uma vez que é um Grupo dedicado à corrida (como o nome indica), elo que todos temos em comum independentemente dos factores exteriores (políticos, sociais, ideológicos, etc.)...”
Por estes comentários fica-se com a ideia que a corrida é um mundo à parte, assim uma espécie de terceira dimensão sem qualquer ligação com a sociedade onde vivemos, estamos inseridos e com a qual interagimos.
Para já e à partida se a população da localidade onde vivo tem imensas dificuldades no acesso à saúde (um direito constitucionalmente consagrado) eu também tenho e isso afecta-me como corredor e muito.
Claro que em vez de expressar o descontentamento e a luta de uma população inteira poderia ter escrito que não tinha acesso aos cuidados de saúde e que isso me afectava como corredor mas sou um ser solidário e essa atitude egoísta de apenas olhar para o meu umbigo quando há gente com problemas mais graves que o meu nunca fez nem fará o meu género.
Mas o mais grave nestes comentários é quererem transformar a corrida num mundo idílico “livres de todas as etiquetas sociais” e “um Grupo dedicado à corrida (como o nome indica), elo que todos temos em comum independentemente dos factores exteriores (políticos, sociais, ideológicos, etc.)”...como escreveu outro participante do grupo que já tinha citado anteriormente.
Quer dizer, nós corredores somos todos iguais!
Os problemas do mundo exterior não nos afectam!
Eu desempregado de longa duração tenho as mesmas condições para praticar a corrida que um quadro superior de uma empresa!
Eu que tenho tremendas dificuldades em conseguir uma consulta médica e quanto ao acesso à medicina desportiva não o tenho nem em sonhos (!) teria a mesma segurança para treinar dos que tem acesso a esses serviços.
Vamos transformar a corrida numa “coisa” para nos adormecer da realidade em que vivemos? Para “ópio” do povo já temos o futebol e mais umas tantas coisas (infelizmente muitas) não vamos transformar a corrida em mais uma delas!
Eu sou corredor há mais de 30 anos, mas um corredor que não se fecha numa redoma de vidro, um corredor que liga a vida com a corrida e a corrida com a vida pois elas são um todo e complementam-se.
A corrida faz parte da sociedade em que vivemos, interage com ela e todos os problemas que a sociedade atravessa têm influência no nosso desporto preferido.
A corrida não é um mundo fechado em si próprio e muitas vezes serve para apoiar causas solidárias como é exemplo determinadas provas,
Já houve provas para apoiar determinado partido ou coligação numas eleições, há provas organizadas por sindicatos e partidos políticos.
Não a corrida não é um mundo à parte! Querer discutir o nosso desporto favorito sem o inserir na sociedade que nos rodeia é um absurdo, e pura demagogia.
Sou corredor de fundo mas não vivo numa redoma de vidro nem tenho medo de inserir o desporto dentro da sociedade que nos rodeia.
Infelizmente nem na corrida somos todos iguais!
Fica aqui um vídeo sobre a luta das populações de Muge e Granho pelo direito à saúde!
Como corredor e como ser humano tenho direito a algo que está constitucionalmente consagrado.
Com ser solidário que julgo ser não luto em termos individuais mas sim em termos colectivos por isso a minha luta é a luta das gentes do Muge e do Granho tão ou mais necessitadas que eu!
Corram, sejam felizes, mas não se esqueçam da sociedade “lá fora”, senão quando deram por isso pode ser tarde!
Jorge Branco



6 comentários:

  1. Amigo Jorge
    De facto não tenho muito mais a acrescentar ao seu belo texto, no qual comungo de todas as preocupações por me rever em algumas delas, gostaria contudo de acrescentar o facto de que, nós corredores, pertencemos à Sociedade, e se esses comentários vindos de "sociáveis" que "andam" nas corridas, então devem estar enganados, este não é o local nem o desporto que procuram, e tenho sérias dúvidas se nós os queremos no nosso desporto.
    Não devemos desistir, nunca.
    Um abraço amigo.

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  2. Aplaudo de pé!

    Um grande abraço, Jorge

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  3. Muito bom! Gostei! Foram as palavras adequadas à situação! Abraço

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  4. É assim mesmo Jorge.
    Quem é que tem o desplante de falar de corrida recusando-se a falar de saúde? Quem é que defende a incongruência? Quem é que, não sendo seu o problema, lhe retira a importância?
    Não resisto a esta do Bertold Brecht:

    "Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego, também não me importei. Agora levam-me a mim. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo."

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  5. Será mais fácil perceber o que se passa com os outros, se conseguirmos pôr as situações em nós próprios! Com o devido respeito pelo "posicionamento" de cada um, não olhemos só para nós!
    A citação do Fernando diz tudo.

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  6. Excelente texto a ilustrar uma situação que infelizmente não é única neste país, em que sob o pretexto de racionalizar, se corta sem qualquer atenção às questões emergentes. Neste País em que cada vez mais o egoísmo é a regra e o altruísmo e a solidariedade a excepção.
    Obg Jorge pela partilha e espero que o protesto tenha resultados positivos para os seus conterrâneos.
    Abraço

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