Bater no ceguinho
Há mais de 20 anos e menos 10 quilos, entrei numa fase, por que todos ou quase todos os amantes da corrida passam: tinha a mania que era atleta e chegava a treinar-me 6/7 vezes por semana. O meu grande adversário não eram os outros colegas corredores, mas o relógio – em cada corrida queria melhorar o tempo que ali tinha obtido anteriormente.
Uma vez, numa Odivelas-Loures-Odivelas, ia bem lançado para conseguir os meus objectivos, na companhia de outro amigo que tinha o meu andamento, entreajudando-nos para não quebrar o ritmo. A cerca de 100 metros da meta, já se avistava a fila dos atletas que iam chegando e reduzindo o andamento antes de cortar a meta (hoje, felizmente, na maioria das provas já se consegue transpor a meta a correr sem abrandar o ritmo). Baixei um pouco o ritmo e eis que sou empurrado por um par de corredores, quase caindo.
Nunca fui de fazer grandes sprints para a meta, mas então irritei-me e disse para o meu colega: “Anda!” Acelerei e consegui apanhar o par de “empurras” mesmo quando eles se preparavam para terminar. Dei uma de Bruno Alves e empurrei-os com os cotovelos, ultrapassando-os mesmo em cima da linha de chegada, ao mesmo que punha as mãos nas costas do meu amigo, impelindo-o para a meta. Com a violência do empurrão, até saltaram os óculos do meu colega. Logo ali fui invectivado – é que quem me tinha empurrado tinha sido uma dupla formada por um cego e pelo seu guia. “Não tem vergonha, empurrar assim à bruta um invisual! Quase que o mandava ao chão!”
Fiquei sem palavras e ganhei a fama de ser tão competitivo que, para chegar à frente, até era capaz de bater num cego… O que eu tive de ouvir (e ainda hoje o episódio vem à baila de vez em quando, engordado com pormenores que o meu colega decidiu acrescentar).
O banho de lama
Nesses tempos, não havia a variedade de sapatilhas de corrida que existe hoje. E para alguém que calça 11,5-12, o problema era acrescido. Por isso, qual não foi o meu contentamento quando, numa viagem a Londres, descobri em saldos um par de sapatos de bicos que me assentavam como os sapatinhos da Gata Borralheira. Ainda por cima eram lindos – em tecido branco brilhante com os reforços em preto e dourado. Tinha que os estrear. Havia um campeonato regional de corta-mato da AA de Lisboa e lá fui eu correr na categoria de veteranos. Era nas Patameiras, em Loures.
Chovia torrencialmente e, uma vez lá chegado, deparou-se-me com um cenário apocalíptico: por entre cordões de água, entrevia-se lama, barro e charcos profundos num traçado aos altos e baixos. Um atleta que tinha corrido antes avisou-me: “Ata muito bem os sapatos e usa pregos de 12mm porque se não os sapatos ficam presos na lama. Já houve vários corredores que perderam os sapatos no percurso!” Olhei para os sapatos branquinhos e para a pista e ainda hesitei. Mas como nunca fui de desistir (vide a minha ida ao hospital, na primeira parte deste texto), lá fui eu. Foi infernal. Só nuns escassos metros, na zona da meta é que o piso estava aceitável (mas antes havia que escalar uma barreira quase na vertical e aí os pregos funcionavam como os dos sapatos dos alpinistas). Grande parte do percurso era em barro pastoso e quem fosse pesado como eu enterrava-se até aos tornozelos – a cada passada tinha de fazer força extra para libertar os pés. O pior, porém, estava para vir. A dada altura, depois de uma descida íngreme, havia um lago pontilhado por árvores semi-submersas. Aí, enterrei-me até aos calções. Ao fim de três voltas nisto, até os cabelos estavam cobertos de lama. Um verdadeiro homem de barro. Se os banhos de lama fazem bem à cútis, depois daquilo, nunca mais irei ter uma pele feia. Escusado será dizer que os sapatos branquinhos adquiriram uma outra tonalidade: castanho fecal. E assim ficaram para sempre, mesmo depois das muitas lavagens a que foram submetidos. Não podiam ter tido uma estreia melhor…
Lá se foi o recorde…
Até à nona edição da Maratona de Lisboa, fui cliente assíduo – não falhei uma. Quando da décima, comecei a treinar-me no final do Verão, para mais uma vez marcar presença. Uma noite escura de Outubro, no auge da preparação, a atravessar uma rua perto da minha casa, na passadeira de peões (por sinal, bem iluminada), dou por mim às voltas pelo ar, aterrando com estrondo no asfalto. Tinha sido colhido por um automóvel. Para cúmulo, o “assassino” era alguém que eu conhecia bem. Era meu vizinho e estava ligado ao atletismo – tinha sido treinador do G. R. “Os Fixes” quando estes tinham uma equipa que se batia com os grandes, na pista e no corta-mato. Vinha distraído e quando tentou travar já era tarde. Eu nem queria ir ao hospital, mas ele insistiu, foi buscar a minha mulher a casa e lá fomos. O diagnóstico foi fractura dupla do braço esquerdo com deslocação. Fui operado e lá se foi a maratona. Ainda hoje lhe digo a brincar que ele foi o grande responsável pela minha decadência atlética. Perdido o incentivo anual, comecei a desleixar-me e hoje arrasto-me como uma lesma pela cauda do pelotão. Ainda agora, na última Meia-Maratona de Lisboa, o melhor que consegui foi participar na mini. Em vez de “Citius, altius, fortius”, o meu actual lema é “Lentus, minimus fracus”. João Palma
Há mais de 20 anos e menos 10 quilos, entrei numa fase, por que todos ou quase todos os amantes da corrida passam: tinha a mania que era atleta e chegava a treinar-me 6/7 vezes por semana. O meu grande adversário não eram os outros colegas corredores, mas o relógio – em cada corrida queria melhorar o tempo que ali tinha obtido anteriormente.
Uma vez, numa Odivelas-Loures-Odivelas, ia bem lançado para conseguir os meus objectivos, na companhia de outro amigo que tinha o meu andamento, entreajudando-nos para não quebrar o ritmo. A cerca de 100 metros da meta, já se avistava a fila dos atletas que iam chegando e reduzindo o andamento antes de cortar a meta (hoje, felizmente, na maioria das provas já se consegue transpor a meta a correr sem abrandar o ritmo). Baixei um pouco o ritmo e eis que sou empurrado por um par de corredores, quase caindo.
Nunca fui de fazer grandes sprints para a meta, mas então irritei-me e disse para o meu colega: “Anda!” Acelerei e consegui apanhar o par de “empurras” mesmo quando eles se preparavam para terminar. Dei uma de Bruno Alves e empurrei-os com os cotovelos, ultrapassando-os mesmo em cima da linha de chegada, ao mesmo que punha as mãos nas costas do meu amigo, impelindo-o para a meta. Com a violência do empurrão, até saltaram os óculos do meu colega. Logo ali fui invectivado – é que quem me tinha empurrado tinha sido uma dupla formada por um cego e pelo seu guia. “Não tem vergonha, empurrar assim à bruta um invisual! Quase que o mandava ao chão!”
Fiquei sem palavras e ganhei a fama de ser tão competitivo que, para chegar à frente, até era capaz de bater num cego… O que eu tive de ouvir (e ainda hoje o episódio vem à baila de vez em quando, engordado com pormenores que o meu colega decidiu acrescentar).
O banho de lama
Nesses tempos, não havia a variedade de sapatilhas de corrida que existe hoje. E para alguém que calça 11,5-12, o problema era acrescido. Por isso, qual não foi o meu contentamento quando, numa viagem a Londres, descobri em saldos um par de sapatos de bicos que me assentavam como os sapatinhos da Gata Borralheira. Ainda por cima eram lindos – em tecido branco brilhante com os reforços em preto e dourado. Tinha que os estrear. Havia um campeonato regional de corta-mato da AA de Lisboa e lá fui eu correr na categoria de veteranos. Era nas Patameiras, em Loures.
Chovia torrencialmente e, uma vez lá chegado, deparou-se-me com um cenário apocalíptico: por entre cordões de água, entrevia-se lama, barro e charcos profundos num traçado aos altos e baixos. Um atleta que tinha corrido antes avisou-me: “Ata muito bem os sapatos e usa pregos de 12mm porque se não os sapatos ficam presos na lama. Já houve vários corredores que perderam os sapatos no percurso!” Olhei para os sapatos branquinhos e para a pista e ainda hesitei. Mas como nunca fui de desistir (vide a minha ida ao hospital, na primeira parte deste texto), lá fui eu. Foi infernal. Só nuns escassos metros, na zona da meta é que o piso estava aceitável (mas antes havia que escalar uma barreira quase na vertical e aí os pregos funcionavam como os dos sapatos dos alpinistas). Grande parte do percurso era em barro pastoso e quem fosse pesado como eu enterrava-se até aos tornozelos – a cada passada tinha de fazer força extra para libertar os pés. O pior, porém, estava para vir. A dada altura, depois de uma descida íngreme, havia um lago pontilhado por árvores semi-submersas. Aí, enterrei-me até aos calções. Ao fim de três voltas nisto, até os cabelos estavam cobertos de lama. Um verdadeiro homem de barro. Se os banhos de lama fazem bem à cútis, depois daquilo, nunca mais irei ter uma pele feia. Escusado será dizer que os sapatos branquinhos adquiriram uma outra tonalidade: castanho fecal. E assim ficaram para sempre, mesmo depois das muitas lavagens a que foram submetidos. Não podiam ter tido uma estreia melhor…
Lá se foi o recorde…
Até à nona edição da Maratona de Lisboa, fui cliente assíduo – não falhei uma. Quando da décima, comecei a treinar-me no final do Verão, para mais uma vez marcar presença. Uma noite escura de Outubro, no auge da preparação, a atravessar uma rua perto da minha casa, na passadeira de peões (por sinal, bem iluminada), dou por mim às voltas pelo ar, aterrando com estrondo no asfalto. Tinha sido colhido por um automóvel. Para cúmulo, o “assassino” era alguém que eu conhecia bem. Era meu vizinho e estava ligado ao atletismo – tinha sido treinador do G. R. “Os Fixes” quando estes tinham uma equipa que se batia com os grandes, na pista e no corta-mato. Vinha distraído e quando tentou travar já era tarde. Eu nem queria ir ao hospital, mas ele insistiu, foi buscar a minha mulher a casa e lá fomos. O diagnóstico foi fractura dupla do braço esquerdo com deslocação. Fui operado e lá se foi a maratona. Ainda hoje lhe digo a brincar que ele foi o grande responsável pela minha decadência atlética. Perdido o incentivo anual, comecei a desleixar-me e hoje arrasto-me como uma lesma pela cauda do pelotão. Ainda agora, na última Meia-Maratona de Lisboa, o melhor que consegui foi participar na mini. Em vez de “Citius, altius, fortius”, o meu actual lema é “Lentus, minimus fracus”. João Palma
Olá Jorge!
ResponderEliminarExcelente a qualidade dos seus "posts"
Literalmente isso é o que se pode dizer, bater no ceguinho:)) cá por mim esta expressão nasceu deste episódio caricato.
Quanto ao banho de lama, felizmente já não se encontram provas em que dá para perder os sapatos, agora ficaria chateado se encontrasse uns ténis que gostasse e assentasse na perfeição e mudassem à tonalidade, ainda por cima castanho fecal :))
Relativamente à Maratona de Lisboa, foi insólito, com tanta gente a conduzir, já não bastava ser atropelado, quanto mais por um vizinho, mas do mal o menos se fosse nos dias de hoje, em que atropelam e fogem...
Quanto ao "arrastar-me como lesma pela cauda do pelotão", não concordo com esta afirmação, afinal sempre aprendi que no espiríto desportivo o que interessa é participar e neste aspecto o Jorge, faz na perfeição quer mantendo-se activo quer partilhado aqui momentos e experiências de vida. Embora por natureza uns sejam mais competitivos que outros,a meu ver o mais importante são os nossos objectivos pessoais e estes devemos traçar em função das nossas capacidades e características e que devem ser faceís de concretizar.
Caso não fosse assim, eu atleta da cauda do pelotão, já tinha desistido.
Um abraço e uma boa semana!
Olá Fábio!
ResponderEliminarGrato pelo comentário mas atenção que o texto deste “post” não é meu mas sim do João Palma conforme a assinatura no final.
O Último Quilómetro é um blogue, diferente, aberto a participação colectiva por isso todas as colaborações são bem-vindas e desejadas.
Se o amigo Fábio quiser mandar um texto terei muito gosto em publica-lo.
Um abraço.
Olá Jorge!
ResponderEliminarLamento o equívoco, não reparei no nome no final.
Obrigado e agradeço a diponibilidade demonstrada.
Um abraço e boa Páscoa!
Que bacana...
ResponderEliminarBoa semana
Bons treinos
Bons Km
Ju
Olá, Teixeira.
ResponderEliminarEstamos dando uma passadinha em seu blog para dizer que está tudo pronto para receber os atletas que participarão de mais uma edição do Mountain Do Costão do Santinho em Florianópolis. Neste ano tivemos recorde de inscrições, com 133 equipes num total de 1012 corredores. Aí vai nossa programação:
Dia 02/04 - Sexta 14:00 às 18:30 - Entrega dos Kits (Costão do Santinho)
Dia 02/04 - Sexta-feira 18:30 - Simpósio festivo (Costão do Santinho)
Dia 03/04 - Sábado 08:00 - Abertura do evento (Costão do Santinho)
Dia 03/04 - Sábado 08:20 - Largada do Mountain Do equipes iniciantes
Dia 03/04 - Sábado 22:00 - Festa Oficial Mountain Do - El Divino Lounge da Beira Mar Norte
Dia 04/04 - Domingo 11:30 - Premiação (Costão do Santinho)
Dia 04/04 - Domingo 12:30 - Almoço de premiação (Costão do Santinho)
Queremos agradecer o carinho de todos e convidar os leitores do blog para participarem de nossos próximos eventos. Fiquem ligados!
GERSON DOS SANTOS
Depto Marketing Mountain Do
www.mountaindo.com.br