O texto do Egas Branco sobre as idas ao hospital de “superatletas” era uma indirecta para mim – foi no carro dele que a minha roupa estava guardada naquela manhã de domingos nos meados dos anos 80 e a prova era a Corrida do Diário de Notícias. Mas para enquadrar o caso é necessário rebobinar o filme.
Comecei a correr, ao fim de alguns anos de interregno de actividade física, com mais dois amigos nos terrenos anexos ao estádio do Jamor. Eu era o menos preparado e o final do treino acabava invariavelmente com a subida da Pierre Coubertin (ainda hoje me custa a fazê-la). No último terço, eu já ia com os bofes de fora, mas um dos meus camaradas não estava muito melhor que eu e, naquele ponto da subida, em voz ofegante, dizia para o outro parceiro (que entretanto se tinha adiantado uns 20 metros em relação a nós): “Vai mais devagar porque o Palma está cansado!” Amiguinho, como se vê… Foi aí que conhecemos o Egas e o Jorge.
Os “atletas” vigaristas
Entretanto, resolvi estrear-me numa prova: a Corrida de Algueirão Mem-Martins, onde se homenageava a Rosa Mota, recém-campeã europeia, e que foi o maior desastre organizativo a que alguma vez assisti – 3 ou 4 falsas partidas, grupos a correr cada um para seu lado e, por fim, anulação da prova.
Algo que me deu um certo gozo, no entanto, foi o facto de o mais bem preparado de nós ter ido para a frente e, depois de ter arrancado por duas vezes e voltado para trás, à terceira, depois de correr cerca de um quilómetro e lhe terem dado indicação que a partida tinha sido mais uma vez anulada, quando ia a regressar, dá com parte do pelotão, que tinha partido de novo, e resolve entrar na corrida ali mesmo.
À noite, na reportagem da RTP, o comentador referia-se ao descalabro que tinha sido a prova, mas acrescentava que os participantes, com a sua falta de espírito desportivo, também tinham contribuído para o desastre e, como exemplo, apresentava em grande plano a imagem de um atleta a entrar na corrida com esta já a decorrer – nada mais, nada menos que o meu amigo, que logo ali ganhou a alcunha de “Vigarista”.
(Ele, anos mais tarde, vingou-se, quando a Revista de Atletismo publicou uma foto de um atleta em cadeira de rodas com uma legenda do tipo: “As deficiências físicas não impedem a prática do desporto.” É que ao lado do atleta em cadeira de rodas aparecia um “coxo”, que era eu. Obviamente, essa foto teve larga difusão, em especial nos “placards” da empresa onde trabalhávamos.)
Meta em Santa Maria
Ainda a refazer-me da estreia falhada em Algueirão Mem-Martins, resolvi inscrever-me para a Corrida do Diário de Notícias, que tinha cerca de 12km, com início e fim no Marquês de Pombal, em Lisboa. Andei a treinar-me para a prova, mas, na semana que a antecedia, por acumulação de trabalho, não corri nada. Por isso, na véspera da corrida, num sábado à tarde, resolvi, juntamente com o meu colega mais bem preparado (o “Vigarista”), fazer um treino puxado de 13-14km, em ritmo de competição, num percurso com muitas subidas e descidas, “para ver se estava bem”.
No domingo de manhã, dia da prova, para reforçar a asneira, decidi ir em jejum para a corrida, para me sentir mais levezinho. Como tínhamos ido de transportes, eu e o meu camarada deixámos a roupa no carro do Egas e do Jorge Branco.
Começa a corrida e tento acompanhar o ritmo do meu parceiro. Resultado: por volta dos 7km, já estava a ficar vermelho e sem ar, senti que não conseguia manter a pedalada e disse-lhe para ir para a frente, que nos encontrávamos na meta. Eu ainda continuei mais uns 2km, mas no Saldanha caí redondo no chão e fui evacuado de ambulância para o Hospital de Santa Maria, com suspeita de ataque cardíaco grave.
Fiquei em observação um par de horas nas Urgências e depois transferiram-me para os Cuidados Intensivos. À noite, com os dados vitais estabilizados e tendo os médicos chegado à conclusão que se tinha tratado de um caso de esforço excessivo e de total falta de açúcar no sangue, deram-me alta, com um aviso para ter juízo, porque tinha estado em risco de vida e da próxima vez poderia não ter tanta sorte.
(Foi a partir de aí que comecei a ler tudo sobre a corrida, a recuperação e a fisiologia de esforço, e a tomar suplementos vitamínicos – ao ponto de os meus colegas me chamarem “O Drogas”).
Entretanto, se eu estava relativamente bem lá dentro, cá fora foi bem pior. O meu companheiro esperou por mim na meta até chegar o último e começou a ficar preocupado. Dirigiu-se à organização e foi informado que um participante tinha sido levado para o hospital. Aflito, dirigiu-se ao carro do Egas e do Jorge e lá foram juntos para Santa Maria. Chegados lá, como eu estava ainda nas Urgências, não lhes podiam dar qualquer informação – teriam de aguardar.
Por uma (in)feliz coincidência, estava lá a ambulância que me tinha transportado e um dos bombeiros, ao ver os meus amigos, dirigiu-se a eles e informou-os que eu tinha vindo inconsciente e não tinha recuperado o conhecimento. E depois acrescentou o comentário assassino: “Se o vosso amigo ainda está nas Urgências ao fim deste tempo todo, é melhor prepararem-se e avisar a família, que ele já não deve recuperar.”
Imagine-se como ficou o meu colega, que até tinha sido quem me incentivara para me iniciar na prática da corrida, ao ter de dar a notícia à minha mulher, que estava em casa à espera sem saber de nada. (Nesse preciso momento, eu já tinha recuperado há algum tempo e estava feliz e contente a beber leite quente com açúcar e a comer bolachas Maria.)
Vá lá, ele não se precipitou, resolveu aguardar mais uns momentos antes de fazer o telefonema fatídico e entretanto recebeu a notícia que eu estava bem.
A prosa já vai longa, por isso fico por aqui, com a promessa de uma segunda parte com mais histórias. João Palma
Comecei a correr, ao fim de alguns anos de interregno de actividade física, com mais dois amigos nos terrenos anexos ao estádio do Jamor. Eu era o menos preparado e o final do treino acabava invariavelmente com a subida da Pierre Coubertin (ainda hoje me custa a fazê-la). No último terço, eu já ia com os bofes de fora, mas um dos meus camaradas não estava muito melhor que eu e, naquele ponto da subida, em voz ofegante, dizia para o outro parceiro (que entretanto se tinha adiantado uns 20 metros em relação a nós): “Vai mais devagar porque o Palma está cansado!” Amiguinho, como se vê… Foi aí que conhecemos o Egas e o Jorge.
Os “atletas” vigaristas
Entretanto, resolvi estrear-me numa prova: a Corrida de Algueirão Mem-Martins, onde se homenageava a Rosa Mota, recém-campeã europeia, e que foi o maior desastre organizativo a que alguma vez assisti – 3 ou 4 falsas partidas, grupos a correr cada um para seu lado e, por fim, anulação da prova.
Algo que me deu um certo gozo, no entanto, foi o facto de o mais bem preparado de nós ter ido para a frente e, depois de ter arrancado por duas vezes e voltado para trás, à terceira, depois de correr cerca de um quilómetro e lhe terem dado indicação que a partida tinha sido mais uma vez anulada, quando ia a regressar, dá com parte do pelotão, que tinha partido de novo, e resolve entrar na corrida ali mesmo.
À noite, na reportagem da RTP, o comentador referia-se ao descalabro que tinha sido a prova, mas acrescentava que os participantes, com a sua falta de espírito desportivo, também tinham contribuído para o desastre e, como exemplo, apresentava em grande plano a imagem de um atleta a entrar na corrida com esta já a decorrer – nada mais, nada menos que o meu amigo, que logo ali ganhou a alcunha de “Vigarista”.
(Ele, anos mais tarde, vingou-se, quando a Revista de Atletismo publicou uma foto de um atleta em cadeira de rodas com uma legenda do tipo: “As deficiências físicas não impedem a prática do desporto.” É que ao lado do atleta em cadeira de rodas aparecia um “coxo”, que era eu. Obviamente, essa foto teve larga difusão, em especial nos “placards” da empresa onde trabalhávamos.)
Meta em Santa Maria
Ainda a refazer-me da estreia falhada em Algueirão Mem-Martins, resolvi inscrever-me para a Corrida do Diário de Notícias, que tinha cerca de 12km, com início e fim no Marquês de Pombal, em Lisboa. Andei a treinar-me para a prova, mas, na semana que a antecedia, por acumulação de trabalho, não corri nada. Por isso, na véspera da corrida, num sábado à tarde, resolvi, juntamente com o meu colega mais bem preparado (o “Vigarista”), fazer um treino puxado de 13-14km, em ritmo de competição, num percurso com muitas subidas e descidas, “para ver se estava bem”.
No domingo de manhã, dia da prova, para reforçar a asneira, decidi ir em jejum para a corrida, para me sentir mais levezinho. Como tínhamos ido de transportes, eu e o meu camarada deixámos a roupa no carro do Egas e do Jorge Branco.
Começa a corrida e tento acompanhar o ritmo do meu parceiro. Resultado: por volta dos 7km, já estava a ficar vermelho e sem ar, senti que não conseguia manter a pedalada e disse-lhe para ir para a frente, que nos encontrávamos na meta. Eu ainda continuei mais uns 2km, mas no Saldanha caí redondo no chão e fui evacuado de ambulância para o Hospital de Santa Maria, com suspeita de ataque cardíaco grave.
Fiquei em observação um par de horas nas Urgências e depois transferiram-me para os Cuidados Intensivos. À noite, com os dados vitais estabilizados e tendo os médicos chegado à conclusão que se tinha tratado de um caso de esforço excessivo e de total falta de açúcar no sangue, deram-me alta, com um aviso para ter juízo, porque tinha estado em risco de vida e da próxima vez poderia não ter tanta sorte.
(Foi a partir de aí que comecei a ler tudo sobre a corrida, a recuperação e a fisiologia de esforço, e a tomar suplementos vitamínicos – ao ponto de os meus colegas me chamarem “O Drogas”).
Entretanto, se eu estava relativamente bem lá dentro, cá fora foi bem pior. O meu companheiro esperou por mim na meta até chegar o último e começou a ficar preocupado. Dirigiu-se à organização e foi informado que um participante tinha sido levado para o hospital. Aflito, dirigiu-se ao carro do Egas e do Jorge e lá foram juntos para Santa Maria. Chegados lá, como eu estava ainda nas Urgências, não lhes podiam dar qualquer informação – teriam de aguardar.
Por uma (in)feliz coincidência, estava lá a ambulância que me tinha transportado e um dos bombeiros, ao ver os meus amigos, dirigiu-se a eles e informou-os que eu tinha vindo inconsciente e não tinha recuperado o conhecimento. E depois acrescentou o comentário assassino: “Se o vosso amigo ainda está nas Urgências ao fim deste tempo todo, é melhor prepararem-se e avisar a família, que ele já não deve recuperar.”
Imagine-se como ficou o meu colega, que até tinha sido quem me incentivara para me iniciar na prática da corrida, ao ter de dar a notícia à minha mulher, que estava em casa à espera sem saber de nada. (Nesse preciso momento, eu já tinha recuperado há algum tempo e estava feliz e contente a beber leite quente com açúcar e a comer bolachas Maria.)
Vá lá, ele não se precipitou, resolveu aguardar mais uns momentos antes de fazer o telefonema fatídico e entretanto recebeu a notícia que eu estava bem.
A prosa já vai longa, por isso fico por aqui, com a promessa de uma segunda parte com mais histórias. João Palma
Boas Jorge
ResponderEliminarAgradeço o comentário que deixou ao meu último escrito, acerca do aniversário do meu Filho mais novo. Como temos a mesma idade escusado será tentar descrever a alegria que é poder usufruir de todas as 'aventuras' que vivi em 2009, com o nascimento do Alexandre. Talvez um dia nos possamos encontrar para uma corridinha e dois dedos de conversa, isto se a minha recuperação continuar a correr bem.
Abraço