Como é bom correr à chuva!... diz-se num dos poemas do nosso amigo Marcelino, “Comandante Marcelino”, como amigavelmente chamávamos a este veterano, frequentador assíduo do Estádio 1º de Maio em Lisboa, nas décadas de 80 e 90 do século passado, e também poeta popular.
O Comandante Marcelino em Mafra, em dia da Corrida dos Sinos
No entanto, às vezes, a chuva tem os seus inconvenientes.
Aqui vão três histórias, de entre as muitas pelas quais todos nós, os praticantes da corrida a pé de longa distância, certamente uma ou outra vez passámos, e que, para cada um de nós, não deixam de ser únicas nas consequências ou nos resultados, e que agora, tudo passado, mas não esquecido, relembramos com um sorriso.
A primeira dessas histórias, já a ela nos referimos noutras ocasiões mas creio que nunca é demais referi-la, por ser um exemplo de um dos vários perigos que antecedem o “muro” da maratona, altura em que as reservas físicas nos irão começar a faltar, e nos podem levar a excessos fatais.
1-Sintra, Base Aérea da Granja do Marquês, IIIª Maratona Spiridon, Dezembro de 1985
O dia ameaçava chuva, mas após alguns aguaceiros dispersos, a partida da saudosa Maratona Spiridon, organizada pelo Prof. Mário Machado, foi dada sem grandes problemas, aos quase duzentos atletas, dispostos a percorrer mais uma vez a mítica distância dos 42195 metros, numa época em que ainda eram poucos os que a isso se atreviam neste país.
E a prova lá foi decorrendo, com um ou outro aguaceiro forte, mas de pouca duração. O pior estava todavia para vir, quando os primeiros haviam já cortado a meta, e ia o autor destas linhas a iniciar a última das voltas do percurso. Ao passar pela meta, e faltando cerca de 7 quilómetros, cai a mais forte das chuvadas acompanhada de granizo.
As pedras de gelo, de razoável dimensão, acertavam nos corpos e provocavam dores finas, especialmente ao embaterem nas cabeças desprotegidas, como era o caso do signatário. Açoitado por este súbito temporal, prestes a atingir o famoso muro da maratona, só teve um pensamento, que agora reconhece ter sido um tremendo erro. Acelerar, pensando assim fugir aos efeitos da intempérie, que felizmente seria de curta duração.
Para ele, no entanto, saldou-se num joelho incapaz de mais esforço sem grande dor, motivo pelo que acabou a prova longe do tempo ambicionado e “ao pé coxinho”, apesar dos incitamentos amigos de quem arrostou com o mau tempo para fornecer os indispensáveis abastecimentos (obrigado Nela Gouveia e Mário Dias).
Uma semana mais tarde iniciava o calvário da sua mais longa lesão como atleta, na inserção dos gémeos da perna afectada, por um período de cerca de seis meses, tanto quanto demorou a recuperar completamente.
2-Nazaré, XVIIª Meia-Maratona, Novembro de 1991
Uma chuva persistente acompanhou a prova desde a partida até à chegada do último atleta do enorme pelotão. Se durante a corrida a situação foi suportável, embora apetecesse por vezes intervalos de sol que não vieram, o longo funil que se formou à chegada, mais demorado decerto devido à chuva que todos encharcava, atletas e controladores de meta, em pouco tempo enregelava o mais resistente dos participantes, que em poucos minutos passava do natural calor, devido ao esforço despendido, para o frio mais desconfortável.
Este “atleta” que vos escreve depressa ficou possuído do maior estado de frigidez que alguma vez suportara. E as consequências não se fizeram esperar. Um tremelicar descontrolado, resultante do súbito abaixamento de temperatura do corpo, próximo do estado que dá pelo nome técnico de hipotermia, apossou-se dele.
Alguém (obrigado Sandra Sousa e João Gonçalves) fez-lhe chegar roupa menos húmida para se cobrir, mas foi um calvário naquele quilómetro andado até à viatura que o havia trazido. Só então, quase num estado de algidez semelhante à que vemos em certos atletas de triatlo após a prova de natação, e que leva, na melhor das hipóteses à sua desistência, o signatário conseguiu recuperar, depois de limpo e vestido com quanta roupa conseguiu arranjar.
3-Piódão, Iº Cross da Serra do Açor, Maio de 1996
Era a primeira da edição do famoso Cross do Açor, organizada pelo incansável divulgador da montanha, o Prof. António Matias, coadjuvado pela esposa Lucinda. Corrida que em poucos anos se transformou numa prova de culto para os amantes desta modalidade, dadas a sua extrema dificuldade e beleza do circuito.
Na véspera nada fazia prever que uma súbita mudança de tempo, pelos vistos frequentes por aquelas paragens, iria duplicar as tremendas dificuldades de um verdadeiro percurso de montanha – belo, agreste e duro – e com 20 quilómetros!...
A partida foi dada debaixo de chuva torrencial e fria. Recordo a nossa admiração pelo traje de alguns amigos espanhóis, de calças de licra, impermeáveis, gorros e luvas, como se estivéssemos em pleno inverno. Afinal a experiência do duro circuito espanhol de montanha viria a dar-lhes razão.
À medida que subíamos a serra o frio aumentava e a névoa adensava-se. Começávamos a ficar enregelados, apesar do tremendo esforço a subir. A oferta providencial do impermeável por um atleta amigo (obrigado Jorge Branco), viria a salvar-me e a prejudicá-lo, o que nenhum de nós podia prever então. À medida que nos aproximávamos do ponto mais alto da serra, e da prova (1250 metros de altitude) o tempo foi piorando.
Ao fim de algum tempo ficaria sozinho a caminho do cume. O frio era intenso. Mal se via à distância de poucos metros. A fazer lembrar ambientes recriados pelo famoso realizador de cinema Michelangelo Antonioni, quando queria descrever a angústia existencial das suas personagens.
E foi então que ocorreu a mais insólita situação de muitos anos de corrida, e felizmente nunca mais repetida. Apossou-se do signatário destas linhas uma sensação de pânico, irracional, aparentemente sem motivo, talvez claustrofóbico, que durou segundos, talvez minutos, até que descortinou na bruma o marco geodésico que era preciso atingir no alto da montanha.
A partir daí foi a descida, a princípio tranquila, e depois abrupta e terrível, de piso íngreme, molhado e escorregadio, pelos caminhos de xisto da serra, até ao vale onde se situa a aldeia do Piódão. A chuva e o frio deixaram as suas marcas e a descoordenação motora em alguns atletas foi até aos limites do admissível.
Mas continuo a dizer, como o poeta popular, e nosso companheiro de estrada: “Como é bom correr à chuva!”...
No entanto, às vezes, a chuva tem os seus inconvenientes.
Aqui vão três histórias, de entre as muitas pelas quais todos nós, os praticantes da corrida a pé de longa distância, certamente uma ou outra vez passámos, e que, para cada um de nós, não deixam de ser únicas nas consequências ou nos resultados, e que agora, tudo passado, mas não esquecido, relembramos com um sorriso.
A primeira dessas histórias, já a ela nos referimos noutras ocasiões mas creio que nunca é demais referi-la, por ser um exemplo de um dos vários perigos que antecedem o “muro” da maratona, altura em que as reservas físicas nos irão começar a faltar, e nos podem levar a excessos fatais.
1-Sintra, Base Aérea da Granja do Marquês, IIIª Maratona Spiridon, Dezembro de 1985
O dia ameaçava chuva, mas após alguns aguaceiros dispersos, a partida da saudosa Maratona Spiridon, organizada pelo Prof. Mário Machado, foi dada sem grandes problemas, aos quase duzentos atletas, dispostos a percorrer mais uma vez a mítica distância dos 42195 metros, numa época em que ainda eram poucos os que a isso se atreviam neste país.
E a prova lá foi decorrendo, com um ou outro aguaceiro forte, mas de pouca duração. O pior estava todavia para vir, quando os primeiros haviam já cortado a meta, e ia o autor destas linhas a iniciar a última das voltas do percurso. Ao passar pela meta, e faltando cerca de 7 quilómetros, cai a mais forte das chuvadas acompanhada de granizo.
As pedras de gelo, de razoável dimensão, acertavam nos corpos e provocavam dores finas, especialmente ao embaterem nas cabeças desprotegidas, como era o caso do signatário. Açoitado por este súbito temporal, prestes a atingir o famoso muro da maratona, só teve um pensamento, que agora reconhece ter sido um tremendo erro. Acelerar, pensando assim fugir aos efeitos da intempérie, que felizmente seria de curta duração.
Para ele, no entanto, saldou-se num joelho incapaz de mais esforço sem grande dor, motivo pelo que acabou a prova longe do tempo ambicionado e “ao pé coxinho”, apesar dos incitamentos amigos de quem arrostou com o mau tempo para fornecer os indispensáveis abastecimentos (obrigado Nela Gouveia e Mário Dias).
Uma semana mais tarde iniciava o calvário da sua mais longa lesão como atleta, na inserção dos gémeos da perna afectada, por um período de cerca de seis meses, tanto quanto demorou a recuperar completamente.
2-Nazaré, XVIIª Meia-Maratona, Novembro de 1991
Uma chuva persistente acompanhou a prova desde a partida até à chegada do último atleta do enorme pelotão. Se durante a corrida a situação foi suportável, embora apetecesse por vezes intervalos de sol que não vieram, o longo funil que se formou à chegada, mais demorado decerto devido à chuva que todos encharcava, atletas e controladores de meta, em pouco tempo enregelava o mais resistente dos participantes, que em poucos minutos passava do natural calor, devido ao esforço despendido, para o frio mais desconfortável.
Este “atleta” que vos escreve depressa ficou possuído do maior estado de frigidez que alguma vez suportara. E as consequências não se fizeram esperar. Um tremelicar descontrolado, resultante do súbito abaixamento de temperatura do corpo, próximo do estado que dá pelo nome técnico de hipotermia, apossou-se dele.
Alguém (obrigado Sandra Sousa e João Gonçalves) fez-lhe chegar roupa menos húmida para se cobrir, mas foi um calvário naquele quilómetro andado até à viatura que o havia trazido. Só então, quase num estado de algidez semelhante à que vemos em certos atletas de triatlo após a prova de natação, e que leva, na melhor das hipóteses à sua desistência, o signatário conseguiu recuperar, depois de limpo e vestido com quanta roupa conseguiu arranjar.
3-Piódão, Iº Cross da Serra do Açor, Maio de 1996
Era a primeira da edição do famoso Cross do Açor, organizada pelo incansável divulgador da montanha, o Prof. António Matias, coadjuvado pela esposa Lucinda. Corrida que em poucos anos se transformou numa prova de culto para os amantes desta modalidade, dadas a sua extrema dificuldade e beleza do circuito.
Na véspera nada fazia prever que uma súbita mudança de tempo, pelos vistos frequentes por aquelas paragens, iria duplicar as tremendas dificuldades de um verdadeiro percurso de montanha – belo, agreste e duro – e com 20 quilómetros!...
A partida foi dada debaixo de chuva torrencial e fria. Recordo a nossa admiração pelo traje de alguns amigos espanhóis, de calças de licra, impermeáveis, gorros e luvas, como se estivéssemos em pleno inverno. Afinal a experiência do duro circuito espanhol de montanha viria a dar-lhes razão.
À medida que subíamos a serra o frio aumentava e a névoa adensava-se. Começávamos a ficar enregelados, apesar do tremendo esforço a subir. A oferta providencial do impermeável por um atleta amigo (obrigado Jorge Branco), viria a salvar-me e a prejudicá-lo, o que nenhum de nós podia prever então. À medida que nos aproximávamos do ponto mais alto da serra, e da prova (1250 metros de altitude) o tempo foi piorando.
Ao fim de algum tempo ficaria sozinho a caminho do cume. O frio era intenso. Mal se via à distância de poucos metros. A fazer lembrar ambientes recriados pelo famoso realizador de cinema Michelangelo Antonioni, quando queria descrever a angústia existencial das suas personagens.
E foi então que ocorreu a mais insólita situação de muitos anos de corrida, e felizmente nunca mais repetida. Apossou-se do signatário destas linhas uma sensação de pânico, irracional, aparentemente sem motivo, talvez claustrofóbico, que durou segundos, talvez minutos, até que descortinou na bruma o marco geodésico que era preciso atingir no alto da montanha.
A partir daí foi a descida, a princípio tranquila, e depois abrupta e terrível, de piso íngreme, molhado e escorregadio, pelos caminhos de xisto da serra, até ao vale onde se situa a aldeia do Piódão. A chuva e o frio deixaram as suas marcas e a descoordenação motora em alguns atletas foi até aos limites do admissível.
Mas continuo a dizer, como o poeta popular, e nosso companheiro de estrada: “Como é bom correr à chuva!”...
Foto do Sálvio Nora, que connosco participou nesta Aventura
Aproveito a oportunidade para lembrar um desses admiráveis companheiros de Estrada, sempre solidário, o inesquecível amigo Sálvio Nora, que a morte prematura, vítima daquela doença que tão difícil é de vencer, afastou do nosso convívio. Salvé Amigo!
EVB
DEZEMBRO 2009
Muito agradáveis de ler estes relatos, de uma época que também eu conheci bem.
ResponderEliminarLembro-me bem daquele ano na Nazaré em que choveu a potes e achei curioso os chuveiros a funcionar na mesma (não era preciso favores de ninguém,eheheh).
Aquela Maratona Spiridon de que fala, tive um amigo que a fez, mas eu não. Ainda estava de "ressaca" da que fiz no autódromo em 1983 (a minha 1ª).
Obrigado também por ter evocado aqui o grande Sálvio Nora, que tive a sorte de conhecer graças à net e com quem estive pessoalmente meia dúzia de vezes.
Abraço.
FA