sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A BRASILEIRA QUE NUNCA PARAVA

Decorria o fim-de-semana de Páscoa do ano de 1987, ou seja em 18 de Abril.
Estava calor em Vila Real de Santo António naquele fim-de-semana. Os espanhóis “abancados” nas esplanadas assistiam a uma prova de atletismo muito “estranha”: 25 “malucos” (pelo menos esse é o número de classificados) propunham-se correr durante 12 horas num percurso gizado entre Vila Real de Santo António e Monte Gordo sendo a classificação dada não pelo primeiro a cortar a meta mas pelo número de km que cada um conseguisse correr nas 12 horas.
Era a segunda edição das 12 horas de Vila Real de Santo António.
Eu tinha 26 anos, quase à beirinha de fazer 27 e alinhava nessa “loucura”.
Foi nessa prova que recebi o maior e mais injusto elogio da minha carreira: a dada altura da prova outro participante diz-me: você é como a Brasileira nunca pára!
Confesso que não entendi nada e dei uma qualquer resposta.
Eu estava aliás a correr em estado “zombie” entre Vila Real de Santo António e Monte Gordo e os meus dois grandes objectivos era alcançar o abastecimento líquido em Monte Gordo dados por uns jovens colaboradores da organização e chegar ao carro do meu tio em Vila Real de Santo António onde tinha o abastecimento sólido e por onde andava o Professor Mário Machado.
Se havia uma Brasileira na prova foi coisa em que não reparei!
Mas havia sim senhora e era a Analice que tinha chegado no ano anterior a Portugal e alcançaria o seu primeiro grande feito em terras lusas ao vencer a prova no escalão feminino!
Eu estava a anos-luz das capacidades, e da genética, daquela grande atleta por isso foi o maior e mais injusto elogio que me fizeram numa prova.
Tão feliz e tão absorto com a minha participação na prova confesso que nem na cerimónia de entrega de prémios me lembro da Analice.
A Analice fechou o sexteto de atletas que faria mais de 100 km e ficou imediatamente atrás de mim na classificação separados por uma escassa diferença: 101,650 km eu 100,900 a Analice.
A partir daí nunca mais eu chegaria à frente da Analice numa prova e ela dispararia para uma carreira ímpar de grande campeã e eu remeter-me-ia há minha modestíssima carreira de corredor de meio de pelotão.
Mas se nem dei pela Analice em Vila Real de Santo António a partir daí comecei a estar atento àquela pequena e possante atleta.
Primeiro quando a vi passar nas provas gritava força Brasil! Mais tarde o nome Analice entrou no meu léxico e chamava pelo nome: sempre recebia em troca aquele sorriso lindo e doce.
A Analice transformou-se na grande senhora que foi na corrida, na grande e extraordinária atleta que todos reconheciam mas eu tímido como sou nunca fui de meter conversa com ela tirando aqueles incentivos quando a via passar.
Mas não esquecia aquela Brasileira que em 1987 nunca parava naquela prova de “malucos”.
Muito mais recentemente fui ver passar a Ultra-Maratona Caminhos do Tejo (a prova que liga Lisboa a Fátima), que passa a escassos 3 km da minha casa na outra margem do Tejo.
Coloquei-me estrategicamente junto da EPAL entre Valada e Porto de Muge e esperei pela passagem de todos os atletas e quando passou a Analice fiz-lhe aquela festa e foi aí que quem a acompanhava de bicicleta fez a apresentação: este é que é o Jorge Branco.
Naqueles escassos cerca de dois km que separam a EPAL da Ponte Dona Amélia onde eu teria de atravessar para a margem sul do Tejo fui avançando na minha motorizada, parando, esperando pela Analice e batendo-lhe palmas, fiz isso n vezes e de todas elas ganhei um sorriso maravilhoso e esta imagem que guarda desta atleta extraordinária, deste ser humano excepcional, desta Brasileira que nunca parava.
Um pouquinho do que sou como atleta, esta teimosia em continuar a correr mesmo quando já tenho fracas condições atléticas deve-se também ao exemplo desta pequena grande mulher.
Enquanto tiver um pingo de força vou “levar” a Analice na minha passada, ela vai juntar-se ao Francisco Pedro, tragicamente falecido em plena recta da meta dos 20 km de Almeirim e ao Sálvio Nora que tão cedo partiu e tanto me ensinou sobre a magia das montanhas.
Eu sou muito terreno, muito pouco de acreditar noutras dimensões mas se as houver tenho certeza absoluta que a Analice por lá andará a correr que a Brasileira nunca pára!   


10 comentários:

  1. Excelente texto Companheiro. Foi por volta d 91 que conheci a nossa amiga e daí até ao presente, desenvolveu-se uma grande amizade. Não tenho condições psicológicas para neste momento falar desta grande amiga. Mais tarde publicarei um artigo no meu blog. Até lá, Analice estou contigo.

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  2. Tão bonito.
    Que a grande Analice descanse em paz.

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  3. Bonita história, Jorge.
    A Analice não era indiferente a ninguém e ao mesmo tempo era uma pessoa que gerava o maior dos consensos: era meiga, alegre e com um sorriso sempre aberto.
    Que descanse em Paz.

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  4. Companheiro
    também para mim foi um enorme privilégio ter conhecido e partilhado kms com a nossa Analice, é um pouco de cada um de nós que também partiu.
    Forte abraço,
    António

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  5. Fantástico Jorge ... tive o privilégio de conhecer a Analice em algumas provas, e de correr ao lado e conversar um pouco naquelas provas de resistência às voltinhas num parque (como as 24h de Portugal ou os 100km de Lousada) ... aquela senhora era qualquer coisa, como atleta e mais ainda como pessoa ... uma história de vida tão dura que derrubaria qualquer um, mas não a Analice. Fiquei muito triste mesmo com a noticia da morte dela ... é sem dúvida uma das minhas grandes inspirações na corrida.
    Grande Abraço

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  6. Belo texto,Jorge,que ela descanse em paz!!!
    Ultra Analice,ultra ser humano!!!
    Abraço

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  7. ..." você é como a brasileira, nunca pára ..."! Injusto o elogio porquê se vocês são feitos da mesma massa?? Não pares tu também de forma a continuares a prestar homenagem devida a uma grande mulher e a uma grande atleta. Abração!!

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