Por Carla André
Uma estrela à distância de 100 milhas que consegui apanhar!
Para querer há que sonhar e para conseguir há que tentar! Pois bem, foi isso que aconteceu, sonhei, tentei e consegui, já tenho nas pernas as 100 milhas, e que 100 milhas! OMD!
Recuperado o sono de duas noites em branco, já posso escrever umas linhas sobre esta minha aventura que faz jus ao nome ‘aventura’, e ao nome real, ‘Oh Meu Deus’!
Quem me conhece sabe que o meu fascínio é a distância, gosto de desafios com muitos dígitos. Depois de ter percorrido 146km nos Caminhos do Tejo em 2013, o número que seguia só poderia ser o 160 ou seja, as 100 milhas.
Quem me conhece sabe também que sou teimosa e que quando determino um objectivo não é à primeira que desisto. Em 2013 tentei as 100 milhas na ‘ Ultima Frontera’ mas não consegui, ficando nos 119km, fruto de falta de preparação e erros, erros que aprendi e me ajudaram a construir o caminho que tracei este fim de semana.
A lista de provas é grande, mas em Portugal só há uma em 2014, a primeira, única, e a mais difícil de todas, o OMD, que percorre 160km pela Serra da Estrela, uma serra muito baixinha:)
6 feira chegou o grande dia de entrar naquela temível meta! O temporal, chuva, ventos, alertas, ajudaram a que os nervos triplicassem e o acreditar que não iria fechar a página das 100 milhas nesta prova. Mais uma vez parti com uma sensação que poderia não terminar, mas para isso estaria preparada pois já tinha o plano B para as 100 milhas.
O ar apreensivo do Paulo a contar que eventualmente podiam não deixar subir a torre por uma questão de segurança deixou-me com um sorriso triste, o nervoso apoderou-se… mas S Pedro até foi simpático e a chuva parou precisamente na altura da partida. Dia 6, 16h, ai vamos nós para a grande aventura! A falta de chuva acabou passados uns poucos kms e lá veio para nos atormentar durante cerca de 50 kms… O percurso é maravilhoso, vivia um misto de felicidade, medo, coragem, mas acima de tudo a certeza que Deus me ia proteger sempre! Os primeiros kms foram maravilhosos com o apoio do Hugo e dos meus amigos que foram tentando cruzar-se a cada ponto possível para gritos de forças, indescritível! Aos 37km chegamos a Loriga onde fomos acolhidos com uma bela sopinha e alguns petiscos para dar força para o que ai vinha! O carinho das pessoas era imenso, confesso que nunca senti tanto apoio e carinho como das pessoas da terra, que se aliaram a esta organização e que tornaram tudo tão especial como uma festa, éramos recebidos a cada ponto como uns autênticos reis e rainhas, não nos faltava nada!
Pois que tudo isto foi muito importante, seguia-se uma parte bem durinha, íamos dar uma volta em que passávamos por mais duas aldeias e voltaríamos a Loriga. Esta volta seria feita maioritariamente por levadas de água. Fomos logos avisados que deveríamos ir pelas levadas e não na berma que seria muito perigoso…a primeira parte consegui fazer à beira da valada, era um trilho ‘consumível‘ e as ravinas eram pequenas. Após a 2ª aldeia tudo piorou e assumir o banho nas pernas até ao joelho, foi num tirinho quando comecei a ver a beira das levadas com rocha facilmente escorregável e a olhar para o fundo e ver que havia uns bons metros abaixo, ok, ai vou eu pela levada…cerca de 20km com os pezinhos na agua foi bem durinho! Adoro água, lama, rios, mas numa prova de 160 km tornava tudo mais desafiante! Entre estas aldeias e devido às rochas molhadas vivi um pequeno susto. Sou uma pessoa cuidadosa nos trilhos técnicos tendo sempre em mente que prefiro ir mais devagar e ‘sobreviver’ do que sofrer uma queda, penso sempre que tenho milhares de kms pela frente. Numa descida um pouco mais escorregadia, em segundos tinha a cabeça no chão, escorreguei e nem sei como, não me amparei por causa dos bastões Levantei-me, à volta só escuridão e natureza, encostei-me a uma árvore e levei as mãos a testa… melhor começar pelo fim para não assustar ninguém, esta tudo bem! Da cabecita saia sangue e eu pensei, meu Deus, espero não ter feito asneira.
1 Minuto para respirar, sentia-me muito bem, não tinha vómitos nem tonturas, foi só um raspãozinho para levar uma recordação da prova! Mais abaixo apanhei as minhas amigas levadas e lavei a testa, coloquei o lenço e segui. Nesta zona atendendo ao elevado perigo haviam mais bombeiros que atletas, que confirmavam se estava tudo ok e estavam de prevenção. Pensei logo que não poderiam olhar para a minha testa porque ficariam alarmados e tapei a cabeça e respondi uma mentirinha, 'está tudo bem atleta?' 'Sim claro!’ No pensamento, 'sim está tudo bem, só dei ali um tralho bati com a cabeça, deitou montes de sangue mas estou fixe, ainda não vomitei'…lol…e lá segui, sentia-me muito bem, mas tive por momentos o coração nas mãos, senti que houve ali um anjo que me protegeu! A aldeia que se seguiu teve direito a música, à chegada de cada atleta tinha um conjunto de pessoas a cantar e tocar para nós! Que máximo! Confesso que não resisti a dançar um pouquito, haverá algures fotos a comprovar que se calhar não vou ver.
E por falar em anjos há pouco,
Deus coloca-me sempre um anjo da guarda nestas provas com muitos dígitos, e assim foi, mais ou menos ao km 50 e pouco Deus colocou-me ali a minha companhia até ao final da prova, o Mauro! O Mauro estava a ‘vassourar’ a prova, mas o lugar em que eu seguia não me preocupava absolutamente nada. Uma prova extrema como esta em que estão a tentar cerca de 40 atletas, dos quais 3 mulheres, o importante é o título Finisher! E lá seguimos os dois a conversar. Confesso que adoro musica, adoro estar comigo em prova mas soube tão bem este momento em que tive alguém para partilhar as levadas, as subidas, as descidas, a sopa, as meias, os sapatos, .. etc etc… tudo menos a queda que só lhe contei no fim..e lá chegamos a Loriga novamente, vimos o nascer do Sol antes de chegar, das paisagens mais bonitas de ver! Adoro o nascer do Sol! À noite seguiu-se o dia e o que teríamos pela frente seria inigualável, a subida a Torre!
Ajustei bem o equipamento para o frio, olhei para o livro de bordo e vi que até a Torre seriam 12kms, ok, pertinho! O pior seriam mesmo os 1400D+ até lá chegar, e fiquei logo animada quando o Mauro disse, fazemos isto em 4h…what? 4h para 12km…que maravilha, venha lá a escalada! Dos percursos mais bonitos da prova! Tenho pena de não ter o hábito de fotografar, as fotos que tiro ficam-me na memória, é imponente e maravilhoso subir a Torre pela conhecida Garganta de Loriga! Naquele momento agradeci mais uma vez a Deus por ter construído aquele cenário e por permitir que eu tivesse tido a coragem de ali estar! Chegar a torre é brutal, a parte quase mais difícil já estava e já estávamos com 85km.
Entro na torre e só digo, estou a morrer de calor. Sei que tiraram a temperatura a todos os atletas mas a mim não foi necessário, parecia eu que tinha saído da praia com tanto calor. Bendito equipamento que me permitiu chegar ali bem quentinha, valeu a nota preta que gastei! Comidinha, palavras simpáticas, aqueceram-nos a roupa, os pés as mãos, sentei num sofá, o Mauro também, com um cobertor, e pedi…’são umas pipocas e um filme por favor, hehehe’ (há foto a comprovar)…isto durou uns minutos só para animar, porque tínhamos de seguir viagem. Estava muito muito bem e aí arrancamos nós para o vale do Rossim, que maravilha! Um percurso fenomenal, com neve e paisagens de cortar respiração! Cruzamo-nos com atletas que conhecíamos e estavam nos 70km, e foi muito animador essa troca de palavras e fotos!
Mesmo antes de chegar a Vale Rossim uma simpáticas palavras trocadas com o Armando Teixeira que estava em treino, muito animador também, e 103km já estavam!
Quando cheguei a Vale Rossim as bolhas que me andavam a chamar há alguns kms quiseram mesmo apresentar-se, ‘olá eu sou a bolha da tua palma do pé e vou contigo até ao fim!’ Nãooo!! Mas assim foi… tenho muito cuidado com os pés porque são o mais importante nestas distâncias mas com uma boa dose de kms em água, pedras etc, não escapei… O compeed lá me aliviou mas as bolhas lá foram conversando comigo dificultando o resto do percurso. Mas querem vir comigo? Ok, mas vão ate ao fim porque não vão ser vocês que me farão desistir! Ai seguimos nós, com destino a Malhão e depois a Folgosinho onde estariam as nossas malas para trocar de roupa, e papar mais uma sopinha. Neste posto deixei um saco de cama para o caso de o sono ser mais forte que eu. Mas eu fui mais forte! Faltavam apenas cerca de 34km para terminar e só ali tive a certeza, doa o que doer, hoje vou ver aquela meta! E tinha de seguir, não houve tempo para dormitar, mudei roupa, cuidar pezinhos, comer e siga, a meta é nossa! Lá saímos os dois bem dispostos, conversadores e às risadas, a tentar que as bolhas fossem bugiar mas elas estavam preparadas para me acompanhar! Correndo e andando lá fomos, o percurso seria mais fácil tecnicamente mas foi o que mais me custou, os pés estavam muito massacrados , foi muito doloroso mas bonito ao mesmo tempo… vimos o nascer do sol novamente e sabíamos que estávamos a chegar! A 10 kms do fim o meu sorriso já era forçado, chorei e rezei para aguentar as dores! O caminho não passava, queria correr e não conseguia, muito muito difícil! Quase a chegar, pensei eu, ainda tivemos de dar uma enorme volta não sei por onde, estava cega de dores ..ate que aparece o Miguel Baptista, com a sua maquina e os seus 100km nas pernas, vi a luz, devo estar perto… éramos 3, eu o Mário Silva que entretanto apanhámos, e o Mauro, animados pelo Miguel. O Miguel diz, depois daquele carro é a meta, desato a correr e dou um salto como se não acreditasse, tenho o Hugo e a meta dos meus sonhos a minha frente!!!! 100 milhas, estas já ninguém me tira!!! Não da para descrever o que é chegar a uma meta destas, a prova mais dura que existe em Portugal, na minha opinião, muito técnica, e pela distancia, e eu acabei de a fazer!
Ao contrario de Ronda não chorei, Ronda era um sonho, as 100 milhas um objectivo muito claro! Havia emoção, mas a mistura do sono, dor e cansaço ainda não me deixam interiorizar o que acabei de alcançar! Eu tinha um sonho de Ronda há um mês e fiz, tinha o objectivo de 100 milhas e já esta… até parece fácil!
Agora confesso que olho para a frente e não vejo uma linha, vou ter de desenhar essa linha. Gosto de seguir um foco de luz como segui nas 100 milhas, preciso! Mas agora já completei a distância, vou ter de encontrar o próximo rumo. A pergunto que mais oiço desde ontem é, qual a próxima? Neste momento tenho dificuldade em responder, mas vai haver, tudo o que tenho planeado para a frente é pequenino demais à luz desta prova. Temos de construir os sonhos como um castelo, desenhá-los e lutar por eles. Colocar um tijolo de cada vez, muitas vezes os tijolos caiem e temos de voltar a pô-los, também me aconteceu quando desisti, quando coloquei o tijolo pela 2ª vez sai mais forte, é só essa certeza que trago comigo!
Prometido é devido e o meu próximo passo é tentar ir fazer os 65km dos Caminhos do Tejo já no próximo Sábado, agradecer a Nossa Senhora toda a protecção e força que me tem dado neste longo caminho! Aqui a distância que fizer não é importante, o importante será a meta, a Ela vou agradecer e pedir inspiração para os próximos projectos! Quem sabe saia de lá com o novo desafio a seguir.
Obrigada ao Hugo que me acompanhou sempre neste longo percurso, antes, durante e depois, aos meus amigos que lá estiveram e aos que acompanharam de longe e em sofrimento ao longo da prova. Obrigada ao Aires Barata e ao Pedro Sanguino pelas recomendações de equipamento, valeram ouro! Obrigada ao Miguel Batista pelas muitas fotos, são elas que vão permitir eternizar os momentos que por lá passei, e obrigada por vires buscar nos últimos momentos da prova e captar o sofrimento final! Um obrigada muito muito especial à minha companhia nesta aventura e que me permitiu terminá-la, Mauro, obrigada do fundo do coração!
Parabéns muito especiais à Horizontes pela excelente organização desta prova de tão grande distância, as marcações irrepreensíveis, os abastecimentos, o percurso duro duro em que dissemos muitas asneiras, mas que depois deu mais gozo à luta, o pequeno guia que construíram com a descrição pormenorizada de todo o percurso, absolutamente fenomenal e confortante saber o que nos espera (e ser à prova de água! Lool), o terem conseguido mover uma zona inteira para vos ajudar e aliarem-se a todos os atletas, tudo com um detalhe e pormenor irrepreensível, falhou alguma coisa? Deve ter falhado, mas possivelmente um pormenor, seria impossível não falhar, foi simplesmente brutal e estão de parabéns por esta magnífica prova que é e será sempre as melhores 100 milhas de sempre! Podem vir muitas mas a vossa, é a prova de 100 milhas em Portugal! Terá sempre um significado diferente porque foi onde entreguei a minha estreia, mas também por toda a dedicação e carinho que colocam nela, merecem os profundos parabéns e que seja sempre um sucesso!
Parece que fechei mais um livro, vários capítulos, aprendi muito e retiro apenas que os ingredientes mais importantes nesta magia que é a corrida são, o sonho, a luta, a dedicação, o acreditar, os amigos, o coração e acima de tudo a Fé que move montanhas e dá-nos forças quando elas já não existem, ela leva-nos onde queremos e torna-nos pessoas mais felizes e melhores!
Obrigada por conseguirem ler-me até aqui, até a uma próxima aventura.
Espetacular, adorei lei :) Muitos parabéns Carla, foi uma jornada incrível e inspiradora!
ResponderEliminarMuitos parabéns! Grande Mulher!
ResponderEliminar"Obrigada por conseguirem ler-me até aqui"?!? Mas quem consegue parar com um relato destes?!?!?!?!?
ResponderEliminarDificilmente conseguirei adjectivar esta incrível aventura que acabei de ler, e que desde já agradeço ao Jorge por a partilhar connosco. Sei o que custa uma Maratona, mas ao ler estes relatos parecem ser corridas muito curtas :)
Até onde vai a resistência humana? É uma pergunta que já ouvi várias vezes a propósito de esforços extremos, mas reformularia para "Até onde vai o querer?"
Porque tudo se resume a isso, à força incrível que o querer, o desejar ardentemente transforma cada um.
Por isso, como compreendo essa vontade de esconder essa ferida na cabeça, o afirmar que está tudo bem quando sabemos que não mas estamos senhores do destino que queremos construir, do destino que queremos oferecer a nós próprios.
Muitos parabéns! Uma vencedora que orgulha qualquer atleta. E que emoção ver essa fotografia com os dois braços bem no ar. Quem corre e sabe o que as coisas custam, não consegue deixar de emocionar-se ao ver uma fotografia tão sentida como essa em que nem é necessário ver a cara para perceber tudo, tal a postura corporal.
Força para a próxima meta!!!
ps - Sobre Loriga, há pouco mais de 20 anos atrás ficámos aí ao pé numas férias e as pessoas de Loriga eram realmente duma generosidade a toda a prova
Fantástico, que grande mulher e atleta! Uma inspiração para mim, sem dúvida alguma.
ResponderEliminarParabéns pela grandiosa aventura e pelas palavras escritas, que me emocionaram.
Força Carla!!
Ao pé disto aquelas aventuras em que participámos parecem agora brincadeiras para crianças!.
ResponderEliminarParabéns, Carla André, pelo feito e seu magnífico relato! E ficamos à espera da próxima reportagem.
É com mulheres destas, com relatos destes, com experiências destas que sonho...
ResponderEliminarE sonho, e treino, e sonho, e corro, e treino, e sonho... E vou sonhando!
Fantástico!