Se para os mais distraídos, ou
mais novos na modalidade, o Trail começou, em Portugal, há uma meia dúzia, ou
dúzia, de anos, os mais antigos na modalidade. ou os mais atentos à história da
corrida para todos, sabem que não é assim.
Conforme referimos neste
espaço tudo começou a meio da década de 90 pelas mãos do Terras de Aventura (e
a Corrida do Monge ainda é mais antiga) com as então chamadas Provas de Montanha
e um circuito que anualmente englobava várias provas do que hoje se usa
designar por Trail.
Nesses anos de pioneirismo a
correr por caminhos que não lembravam ao diabo (!) e “impróprios” para se
desenvolver uma prova de atletismo, alguns eventos ficaram para a histórica do
Trail/Montanha em Portugal como foram os casos da Transestrela ou do Cross da
Serra do Açor, só para dar dois exemplos de provas que a realizar na
actualidade ombreariam com as mais “duras” e belas provas dos dias de hoje
desta espectacular vertente da corrida!
A 5 de Maio de 1996 teria lugar a primeira edição do Cross da Serra do Açor, uma prova que nos seus 20 quilómetros de percurso apresentava um desnível acumulado de 1974 metros.
Mas para apimentar mais uma
prova que já de si era algo de diabólico para a época o São Pedro brindou os
105 participantes com uma tempestade e predominou durante toda a prova um vento
forte e gelado e chuva, igualmente forte.
A descida final da prova (se a
memória não nos atraiçoa eram uns 3 quilómetros) era absolutamente a pique e em
cima de pedras de xisto que escorregavam como manteiga!
Na altura não havia sapatos
para Trail (pelo menos em Portugal era algo desconhecido) nem se usavam bastões
nas provas mais técnicas.
Foi usando sapatos de estrada
que aqueles 105 pioneiros se tiveram de atirar por ali abaixo, na tentativa de
chegar inteiros à aldeia histórica do Piódão enfrentando a a descida mais
técnica que já alguma vez se realizara em terras lusas!
Essa descida foi tão marcante
na época e gerou tanta polémica que a organização da prova foi alvo de fortes
críticas por parte de alguns atletas que participaram na na mesma.
As respostas a essas críticas
viriam publicadas no Boletim da Montanha e reproduzimos aqui neste espaço esse
texto em formato de imagem.
Ainda nos lembramos do ar de
espanto com que ficámos na partida ao ver alguns participantes espanhóis
equipados com gorro, luvas, corta-vento e até calças de licra se a memória não
nos atraiçoa.
Com o decorrer da prova
começámos a entender o porquê daquele equipamento e a perceber que os Espanhóis
eram muito mais entendidos que nós no tocante a correr uma prova de Montanha.
Pese embora tenhamos acabado a
prova, em grande dificuldade, talvez não muito longe da hipotermia, e
completamente “partidos”, voltaríamos àquela prova mais duas vezes e ficámos
para sempre a sentirmo-nos como filhos, adoptivos, da Serra do Açor!
Curiosamente nunca conseguimos
fugir do último lugar da tabela classificativa nas nas nossas três
participações mas sempre com melhoria de tempo sendo a mesma bastante
significativa entre a nossa primeira e última participação:
5 de Maio de 1996 – 3:22:46, 4
de Maio de 1997 - 3:05:29, 3 de Maio de 1999 – 2:49:38.
Mais duas curiosidades: foi no
Açor que corremos pela primeira, e única vez, com o dorsal número um e
despedimo-nos daquela prova mítica a 2 de Maio de 1999 precisamente no dia em
completámos 39 anos de idade.
Deixamos aqui um texto,
escrito por tio e sobrinho, sobre a grande aventura que foi a participação na
primeira edição do Cross da Serra do Açor e esse texto encontra-se publicado na
página do Terras de Aventura, na secção crónicas.
Este texto é dedicado à
memória do saudoso Sálvio Nora, que tão precocemente partiu do nosso convívio,
mas que continua a acompanhar-nos por essas montanhas fora, eternamente.
Sálvio Nora - Açor 1999
*
Uma má digestão (maldita feijoada !...), um subconsciente atormentado, um cansaço excessivo, fosse lá o que fosse, o certo é que tive outro dia um pesadelo terrível, com Inferno e Paraíso, Demónios e Anjos. Só faltou Deus que devia andar por outras paragens.
Foi assim:
Sonhei que estava no Paraíso: sossego, beleza, a natureza perene. De repente surgem uma data de penitentes; almas perdidas, em calções, aos pulos, à chuva e ao frio. Um diabo sobe para cima de um muro e começa a dar uma estranha explicação sobre os caminhos do calvário. Ouve-se um apito e eu parto a correr com todas aquelas almas condenadas. Em seguida o pesadelo desenrola-se durante vários milénios (nos pesadelos a noção do tempo é diferente) . Os condenados correm numa Serra fustigados por chuva quase diluviana e vento quase ciclónico numa sucessão dantesca de subidas e descidas. Por vezes aparecem uns Anjos ( muito estranho anjos no inferno ?!...) que dão garrafas de água às vitimas da perdição. Ao fim de vários milénios a penar encontro um anjo que me manda seguir por uma vereda abaixo. Aproveito e peço ao referido Anjo que me abra uma barra energética (pecado da gula !...). Eu vinha há vários séculos a tentar em vão abri-la pois tinha as mãos geladas. O Anjo também já não tinha as mãos em grandes condições e teve que se servir dos dentes ( daqui deduzi que se os Anjos não têm sexo dentes posso comprovar que têm). Aproveito para explicar que este Inferno era gelado. A contrário do que seria de esperar de um Inferno que se preze aqui não havia caldeirões a ferver sobre grandes labaredas. E lá vou eu vários séculos pela mais diabólica das descidas a caminho das profundezas do Inferno. Completamente enregelado (dei um impermeável que trazia ao meu tio, que apareceu no sonho meio congelado, a barba coberta de gelo, na esperança de com este meu gesto alcançar alguma graça divina que me resgatasse das garras do Demo) agarrado a um improvisado cajado, com um passo ébrio, e já sem acreditar em qualquer hipótese de salvação. Ao fim de mais uns quantos milénios encontro uma aldeia de casas de pedra cinzenta. É o centro do Inferno pensei eu. Afinal estava enganado. Para enorme espanto meu, e alívio indescritível, tinha acabado de chegar ao céu ( este pesadelo é mesmo esquisito !...). Numa casa encontro mais Anjos que me dão um saco com uma série de papeis, um iogurte e uma camisola e me dizem que a minha penitência terminou! É então que me aparece um Diabo que nem me dá tempo para lhe perguntar o que faz ali no paraíso. De chofre pergunta-me: Queres vender-me a tua alma em trocar de um duche quente ?. Não hesito nem um segundo e respondo; a tremer de frio: É p’ra já! Quando acordei deste pesadelo tinha imensas dores nas pernas e mal podia andar. Mas, coisa estranha, ficou a vontade de voltar àquele Paraíso (ou seria Inferno) apesar das penas sofridas.
Escrito por Egas Branco e Jorge Branco a propósito da sua participação na primeira edição do Cross da Serra do Açor em 1996.
Excelente texto/documento histórico.
ResponderEliminarObrigado pela partilha
Um abraço, Jorge
Obrigado João.
ResponderEliminarÉ conveniente não esquecer o passado porque sem ela não há presente nem futuro!
Abraço.
Companheiros de "pesadelo", as aventuras da prosa nada ficam a dever aos "paraísos" e "infernos" por onde tivémos a felicidade de passar!
ResponderEliminarObrigado grande campeão!
ResponderEliminarAquele abraço.
Grandes atletas!
ResponderEliminarUm texto que transmite bem a sensação de aventura vivida.
E tantas vezes quando corremos não sentimos ora a impressão de estarmos no inferno, ora a sensação de estarmos no paraíso.
Beijinhos
Obrigado isa,
ResponderEliminarBons treinos para a maratona!
Beijinhos.
Olá Jorge, gostei muito deste post. Há que lembrar os pioneiros das corridas de montanha em Portugal...sem eles não haveria esta "moda dos tempos modernos" e a consequente multiplicação de provas em montanha em Portugal, de norte a sul. Muitos dos grandes organizadores de provas de hoje viveram esses tempos e nota-se o gosto que tem pela natureza - conheci o Moutinho na Geira Romana - o homem quando fala dos trilhos que nos andou a preparar tem cá um brilho nos olhos que só visto....devem ter sido tempos fantásticos...hoje temos as sapatilhas adequadas, as meias de compressão, os casacos xpto impermeáveis, o GPS, camisolas técnicas, as mantas térmicas, as mochilas....acho que só nos falta um ar condicionado portátil outdoor (hmmm...boa ideia, vou ali patentear a coisa e já volto...)....já está :D....vocês, nesse tempo quase nada...grandes heróis!!! E até parece que foi à 100 anos, mas não foi à pouco mais de 15.
ResponderEliminarObrigado por partilhar história connosco.
Abraço e boas corridas
Curiosamente, ou talvez não, o Professor António Matias, do Terras de Aventura, também me confessou uma vez que planear os percursos é o que lhe dá mais gosto fazer!
ResponderEliminarTalvez porque ele, tal como o Moutinho, são profundos amantes da natureza e gostam de correr nesses percursos!
Curiosamente nessa provas pioneiras o Professor António Matias chegou a participar em muitas provas para além de todo o trabalho organizativo!
Como foi o caso da primeira edição do Cross da Serra do Açor onde se classificou no vigésimo quinto lugar. Foi acabar a prova e ir tratar das classificações!
Um abraço.
Para mim é um prazer reler isto. Procurei por todo o lado informações sobre esta prova. Hoje encontrei e fico feliz por isso. Sou organizador de provas, por exemplo o OH MEU DEUS, e estive nessa prova. Se alguém tiver as classificações ou registos de inscrições podem procurar pelo Paulo Alexandre Garcia.
ResponderEliminarTerminei a prova mas estive para desistir junto ao marco geodésico onde estava uma equipa de bombeiros e viatura. Não desisti e acabei com um banho improvisado na torneira publica de Piódão.
Obrigado por me trazer boas recordações.
Prezado amigo tenho a classificação da referida prova!
ResponderEliminarNa classificação encontro um Paulo Garcia, equipe Clube IBM, que foi o quadragésimo quarto sénior com o tempo de 2:12:36.
Se quiser mande-me um mail (teixeirajb@gmail.com) que eu digitalizo a classificação e mando-lha.
Velhos tempos!
Um abraço.
Brilhante amigo Jorge!!!
ResponderEliminarComo dantes não tinham nada destas modernices e aventuravam-se na mesma!!
Hoje temos tudo, pneus com grande aderência, bastões que ajudam na progressão.... enfim uma panóplia de situações que ajudam e muito a chegar á meta...
E se não fossemos com nada disso... bom ténis de trail irei levar... mas os bastões vou passar....
Espero que a Serra do Açor esteja do meu lado e o São Pedro também.
Quero muito ser feliz na Serra do Açor, e chegar ao Piodão com aquele sorriso! :)
Faço questão de levar em mente todo este testemunho e podes crer que em momento algum da prova o vou esquecer. :)
Beijinhos
A Serra do Açor vai ser tua amiga. Já falei com ela e disse-lhe para tratar bem a Marta / Piolha que é minha amiga!... :)
EliminarBeijinhos.