Por José Alien (corredor do pelotão), in
“Estórias da Corrida” (inédito)
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Dedicado a Rachel
“(...) O condutor do camião olhou pela
janela para observar a ultrapassagem do outro camião enquanto continuava a
travar. Mas em vez disso viu um homem sem cabeça que o ultrapassava montado
numa motocicleta com sidecar (...)” Chester Himes (Jefferson City,
Missouri, 1909-1984), in “All shot up” (O Crime não Compensa) (1965)
*
Tinham-se acostumado
a vê-los em corridas de fundo. Eram dois. Pareciam gémeos. Havia qualquer coisa
neles de muito semelhante, embora as feições fossem completamente diferentes.
Mas se os observassem
com cuidado acabavam por reparar que era forma de correr, muito certa. Corriam
às vezes quilómetros e quilómetros de estrada sem fadiga e sempre no mesmo
andamento.
Eram evidentemente
corredores de pelotão, desses que andam misturados na grande massa humana das
grandes competições que vemos às vezes, nem que seja na TV. Significava isso
que não disputavam quaisquer prémios. Apenas a vontade de chegar ao fim no
melhor tempo possível.
Mas não era o
primeiro que se lhes juntara e não aguentara aquele ritmo demasiado igual, sem
oscilações. Às vezes, inesperadamente um deles acelerava bruscamente, saltando
de um para outro andamento, e logo o outro o seguia.
Foi um daqueles
acidentes estúpidos que podem acontecer em corridas pedestres mal organizadas,
mal protegidas e acima de tudo sujeitas ao egoísmo e desmandos de
automobilistas mal formados, tão vulgares nas estradas do país.
Um cruzamento. Um
condutor que não respeitou sinais para parar e deixar passar o pelotão dos
corredores. Um choque, Um atropelamento. O carro ficou com a frente desfeita. O
automobilista moribundo. O atleta atropelado, que era um dos nossos dois
amigos, foi projectado pelos ares. A cabeça separou-se do tronco. Correu ainda
uns metros por inércia, decepado, caiu
Uma multidão rodeou
os acidentados, mas depressa os da frente estancaram horrorizados. Do tronco do
atleta saía um fumo azulado. As veias pareciam-se com fios retorcidos. Não
havia sangue. Apenas uma amálgama de fios e circuitos. Um leve cheiro a
plástico queimado libertava-se do corpo caído.
Investigações
posteriores revelaram que toda a sua identificação estava em ordem. Não foi
encontrada qualquer indicação de residência nem de familiares vivos, apenas a
vaga indicação de profissão: professor de matemática do ensino secundário, numa
escola dos subúrbios da grande urbe.
As investigações,
discretamente levadas a cabo, concluíram que os colegas de competição se tinham
habituado a reparar em uma ou outra particularidade do acidentado.
Por exemplo, nunca
bebia café antes da partida, o que é raro no meio, já que a cafeína é um
estimulante bem conhecido dos atletas. Sou muito nervoso, justificava-se ele
para a recusa, o que toda a gente não deixava de estranhar porque ninguém o
vira alguma vez sem controlo, o que também não é muito frequente, já que antes
da partida são vulgares os estados de quase histerismo entre os atletas mais
sensíveis, e mesmo os mais calmos manifestam sintomas como agitar a cabeça,
bater os dentes, saltar nervosamente no mesmo lugar, esfregar as mãos ou
bate-las freneticamente, pedindo aos juízes que antecipem o tiro de partida.
Outra das suas
características, talvez ainda mais estranha, era procurar sempre antes da
partida instalações sanitárias com tomada de energia eléctrica. Ora antes dos
juízes premirem o gatilho para dar ordem de largada às centenas ou milhares de
atletas, não sei se sabem, que quase nenhum de entre aqueles milhares resiste á
necessidade de correr para o primeiro sanitário á mão, como se disso dependesse
o bom êxito da sua prova. Porém, num ambiente de nervosismo como são as
partidas das grandes provas pedestres de estrada, já ninguém liga às manias,
tiques e bizarrias do companheiro do lado, e quando algum novato se interrogava
da razão de tão estranho pedido de WC com tomada de energia eléctrica, logo
choviam as justificações dos veteranos da corrida: -”É para carregar as
baterias do pacemaker, coitado” ou “Não corre sem fazer um electrocardiograma
de esforço e tem sempre que carregar a bateria para se ter a certeza que não
falha.”
Teria sido esta
provavelmente a justificação dada e toda a gente acreditou.
Após o lamentável
acidente o amigo da vítima juntou-se a outro grupo de corredores e curiosamente
parecem todos iguais. Mas se alguém os olhasse com mais cuidado verificaria que
a semelhança continua a ser o estilo de correr, demasiado certo.
Essa de pregar sustos com um título desses... :)
ResponderEliminarA história está bem "esgalhada"!
Um abraço
Bem a responsabilidade do teu susto tem co-autoria: o título é da responsabilidade do autor do texto, o José Alien, já a responsabilidade pelo grafismo do mesmo é do coordenador do Último Quilómetro ou seja o teu amigo Jorge Branco!
EliminarVamos informar o José Alien que achaste o texto bem "esgalhado"!
Gostei muito da história! Por momentos, temi que fosse mais uma daquelas histórias tristes resultantes de acidentes rodoviários... Mas, sendo assim, é só mudar a peça e ligar novamente à corrente, não? :)
ResponderEliminarBeijinho
Obrigado Rute.
EliminarNão sei o nível do estragado provocado pelo acidente, o José Alien é que deve estar dentro do assunto (!), mas mais peça menos peça deve dar para recuperar o "atleta".