terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

DO TEATRO E DA CORRIDA

Por: Egas Branco
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"EU É QUE SOU O PRIMEIRO" (LINE), de ISRAEL HOROWITZ (Wakefield, Massachusetts, EUA, 1939).
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“Uma peça estreada em 1967, num teatro de Nova Iorque. 
Encenação de Armando Caldas, para o 
Intervalo Grupo de Teatro, sediado em Linda-a-Velha. Estreada no final da semana passada (31 de Janeiro).
Só uma pequena nota sobre esta peça, grande sucesso de público, em Nova-Iorque, Londres, Paris e eventualmente outros locais, que sob uma aparente facilidade de escrita e meios contem no entanto uma severa crítica a um "way of life", em que o que interessa é vencer, não interessa como e quantas vítimas se vão deixando pelo caminho. 
Tudo dito de uma forma por vezes muito cómica mas que nos deixa espaço para uma reflexão.
E terminando à boa maneira do Intervalo com uma canção síntese (Luís Macedo e Fernando Tavares Marques).
Não percam! Depois direi mais alguma coisa sobre as reflexões que a visão desta peça me suscitou.”
(nota para os amigos facebookianos, publicada em 3-fev-2014)
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Para nós, que gostamos muito de Teatro, este autor tem todavia outros fortes motivos de ligação connosco. Um deles é que é  um praticante da modalidade desportiva que ao longo da nossa vida mais apreciámos, que é a corrida a pé de longa distância (entre os 10 e os 100 km).
Mas vai ainda mais longe porque casou com uma maratonista campeã, a britânica Gillian Pamela Horowitz, várias vezes no pódio - em Tóquio, Londres, Paris (que venceu em 1980, com 2h49’42”, belo tempo na época) e muitas vezes nos 10 primeiros, além de ter sido campeã do seu país.
Mas não termina aqui esta sua relação com a corrida. É que adaptou uma peça de um reconhecido dramaturgo italiano, Edoardo Erba, aliás de grande sucesso, “Maratona de Nova Iorque”, de 1992, cujos personagens são dois amigos que treinam para fazer aquela maratona. A peça recebeu o reputado prémio italiano Candoni, em 1993.
“LINE” (EU É QUE SOU O PRIMEIRO), que agora foi encenada no INTERVALO GRUPO DE TEATRO, é no entanto bastante mais antiga (1967).
Digo isto porque existe no mundo da corrida a opinião, ainda maioritária suponho, de que o que interessa é acima de tudo participar, terminar, competir sem batota (não encurtando caminho ou viajando de metro), sentimento que se estende até a muitos atletas de alta competição, até a super-campeões, como é o caso da actual detentora do ainda melhor tempo mundial feminino da maratona, a competição dos míticos 42,195 km (que vem desde o início das Olimpíadas, nascidas na Grécia).
Trata-se também de uma atleta britânica, a inglesa Paula Radcliffe, com o fantástico tempo para uma mulher de 2h15’25”, e que toda a gente que gosta deste desporto, recorda que numa maratona olímpica (Pequim, 2008), em que estando em sérias dificuldades físicas, por indisposição, preferiu perder alguns lugares e chegar modestamente (23ª), a abandonar a competição, num exemplo de desportivismo difícil de superar. Ou os que, perante um companheiro em dificuldades não hesitam em perder segundos para o ajudar.
Esta atitude começa no entanto, nos tempos actuais, a tornar-se mais rara, porque aquilo que Israel Horowitz critica nesta sua magnífica peça, agora em cena num dos nossos palcos de eleição, ou seja a “competitividade” (termo detestável), cega e desumana, que grassa no seio da sociedade capitalista em que vivemos, tende a atingir até um desporto de massas, como é este de que tanto gostamos.  
Enganar, derrubar, trair, passaram a ser considerados passos aceitáveis no caminho de um qualquer sucesso social. Explorar o próximo, derrubá-lo para o ultrapassar, deixaram de constituir entraves morais para muitos, incapazes de raciocinar por si próprios.
“Mérito” da comunicação que temos, que invade as casas, da escola que pretendem que tenhamos, para deformar os jovens à medida das necessidades do sistema social vigente.
Eis o que Horowitz nos faz pensar através da sua comédia, absurda porque não há uma referência directa à realidade, a sua linha pode ser qualquer coisa. Ao estilo dos seus amigos pessoais, Ionesco e Beckett, Horowitz traça um retrato das relações humanas na sociedade capitalista modelo que é o seu país natal, os EUA (em 1967, porque depois têm vindo a piorar...).  Até mesmo as relações entre os sexos tendem a mercantilizar-se, como o denunciam tantos artistas contemporâneos, mas que Horowitz já aqui mostra, uma vez mais pelo absurdo.
Através de um texto muito vivo, numa linguagem quase vulgar, às vezes muito rude, Horowitz e o seu encenador Armando Caldas, prendem-nos a esta intriga, que se desenrola num cenário minimalista, em que o único adereço é uma linha branca, que todos pretendem ultrapassar, recorrendo a todos os truques sujos e que no final será retirada pelo “vencedor”.
Uma citação aos actores, excelentes, João José Castro, Miguel Almeida, Cristina Miranda, João Pinho e Fernando Tavares Marques.
Por favor não percam.
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Adenda: compreendo a t-shirt de Israel Horowitz (ver foto que obtive na Internet). Eu também teria provavelmente votado assim naquelas eleições, mesmo prevendo as desilusões a curto prazo. Mas sempre foi uma pedrada no charco daquela sociedade de um  ainda muito forte racismo! 
Egas Branco

1 comentário:

  1. Excelente texto, Egas.

    "em que o que interessa é vencer, não interessa como e quantas vítimas se vão deixando pelo caminho"
    O que esta frase me levaria a dizer das coisas que se passam no mundo do trabalho...

    Felizmente que no nosso desporto de eleição continuam a existir muitos e bons casos do mais puro desportivismo. E alguns em pessoal bem jovem, fazendo-nos crer que há esperança.

    Uma última palavra a Paula Radcliffe, uma campeã em todos os sentidos!

    Um abraço!

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